sábado, dezembro 30, 2006

Poema assassino

Quero matar esta sensibilidade que me mata
Quero ser insensivelmente insensível,
Como uma andorinha a quem arrancaram o coração.
Não quero sentir absolutamente nada
E não posso sentir absolutamente nada
Sem que logo racionalize todo o sentir.
Talvez não sinta completamente
Porque sempre que sinto penso que sinto
E ao pensar que sinto deixo de sentir verdadeiramente.

(Quero deitar-me à sombra de um carvalho
Robusto, lindo, grande e majestoso
E diluir-me na sombra que ele me dá
Até não se saber onde começo eu
E acaba a sua sombra.)

Quero matar esta racionalidade que me mata
Quero ser irracionalmente irracional,
Como uma coruja a quem tiraram a razão.
Não quero pensar absolutamente nada
E não posso pensar absolutamente nada
Sem que logo me enrodilhe nos pensamentos.
Mas eu penso que não quero pensar nada
E ao pensar que não quero pensar, penso:
Pensar que não se quer pensar é pensar verdadeiramente.

(Quero encostar-me a um canto e salivar de boca aberta
Sem que a minha racionalidade reprima
Toda a estupidez que é salivar a um canto
Como uma besta estúpida
Que não faz mais do que salivar.)

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Pensamentos

- Parece que ninguém é capaz de o insultar, por mais que diga.
Elishama ponderou naquelas palavras.
- Pois não - disse ele. - Ninguém. E por que havia eu de me deixar insultar?
- E se eu lhe dissesse - replicou ela - para sair de minha casa, você saía?
- Sim, saía - disse ele. - A casa é sua. Mas depois de eu ter saído a senhora havia de ficar aí sentada a pensar naquilo que a levou a pôr-me fora. É quando as pessoas ouvem alguém dizer-lhes os seus próprios pensamentos que se sentem insultadas. Mas por que não serão os próprios pensamentos dignos de ser repetidos por alguém?

Karen Blixen, "Uma história imortal"

Será porque saídos da boca dos outros nos surgem como uma confirmação daquilo que de menos bom pensamos de nós mesmos?

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Cozinha económica

Lá fui eu. Mais uma vez. Com um sorriso a rasgar a minha cara ao meio. Fui estar umas horas com quem tem frio na noite de Natal. Com quem não tem o calor da família. Não tem o calor do afecto. Não tem o calor do presente que é presença de alguém. Não tem o calor da lareira. Não tem o calor da casa. Tem frio. Na noite de Natal. Entrei na sala exígua, que foi enchendo à medida que a fome ia conduzindo até ali os passos de todos os que tinham frio naquela noite, onde já soavam os acordes de umas melodias de Natal gravadas no automático. Primeiro olhavam-se calados. Meio desconfiados. Ou envergonhados. Depois lá veio a "Laurindinha" e o "Não te encostes à parreira" e aquela senhora mais animada e que tranpirava energia arrastou alguns para um pézinho de dança. As barrigas começavam a estar demasiado próximas das costas. Davam horas. Fomos subindo para a sala. As mesas já estavam postas. Cheirava bem. Os lugares foram todos ocupados num instante. Agradecemos a comida. No momento seguinte os pratos brancos ganhavam cor, textura e cheiro, para rapidamente se voltarem a mostrar brancos, agora mais sujos de azeite e abrigando algumas espinhas. Olhei tantas caras. Falei com tantos. Troquei olhares. Alguns eram meio malandros. Não liguei. Até achei graça. Fiquei feliz por ver rostos animados. Fiquei feliz por saber que as lágrimas com que alguns salgavam um pouco mais o bacalhau caiam de alegria, por agradecimento, e não tanto por tristeza. Essas, se calhar, estavam reservadas à almofada. Mas pelo menos naquele momento, eram lágrimas felizes. Fiquei feliz por conseguir deixar o meu cantinho, por ter frio, só por umas horas, para que outros conseguissem ter calor, mesmo que só por algumas horas. Depois despedi-me. Prometi voltar. Fui para o meu forno. Sem sentimentos de culpa. Não é preciso esquecer-me de mim para conseguir aquecer os outros. E também não é preciso esquecer-me dos outros para conseguir aquecer-me a mim.
Terá tudo isto algum sentido?...

Natal aqui

Os meus avós estão velhinhos. Estão mais enrugados, mais pequenos, mais baixinhos e mais casmurros. E eu gosto cada vez mais deles. Talvez só percebamos o valor de coisas e de pessoas quando se torna evidente que elas vão desaparecer. Não é novidade. É simplesmente evidente.
Passei mais um Natal nesta casa de todos os meus Verões, de infância e adolescência, nesta casa onde joguei futebol, brinquei com Barbies e Kens, onde fiz puzzles, assaltei galinheiros, fui polícia, escondi-me, apanhei a minha irmã, corri e saltei, fiz cordelinhos de lã e brinquei com os milhares de gatos que por aqui passaram, parti copos e plantas, tomei banho de mangueira e mergulhei no enorme alguidar de plástico vermelho, nesta casa onde esmaguei formigas e fiz experiências com lama, onde cozinhei folhas e flores e as servi aos meus pais no restaurante que abri e fechei com a minha irmã… e tantas outras brincadeiras e tantas outras asneiras que criança que as não faz não é criança. Como gostava de ver agora esses tempos do lado de fora, rir-me como terão rido os meus pais e avós com duas crianças marotas levantando o pó dos cantos à casa!
Passei mais um Natal nesta casa de memórias. Recordo alguns Natais muito nitidamente, como se gravados a ferros no meu espírito… outros nem tanto. Os mais bonitos vivi-os quando o Pai Natal descia pela chaminé. A magia de acordar de madrugada ao fim de uma noite mal dormida na expectativa… e depois abrir os presentes em êxtase! Só a verdade crua cortou a magia. E de ano para ano o Natal tornou-se mais pesado. A magia do Pai Natal fugiu e deu lugar a um estranho sentimento de culpa… um sentimento de culpa por ter tanto, por receber presentes, por comer bacalhau na consoada e galinha caseira no dia de Natal, por estar em casa e quentinha, por ter família, por estar aqui… E ao mesmo tempo saber tanta gente nas ruas, na fome, na solidão, na pobreza extrema… E saber que há quem se suicide nesta época, saber que há quem chore, quem trema, quem sofra. Eu não gosto do Natal. Incomoda-me. Incomoda-me porque me sei acomodada a muitas coisas. Porque tento sempre fazer algo de importante e nunca consigo. Incomoda-me porque se tornam evidentes a hipocrisia e as contradições humanas. Mas além de me incomodar, irrita-me. E há coisas que me irritam profundamente no Natal.
Irritam-me os Pais Natal de todos os tipos, de plástico, de vidro, de cartão, de carne e osso, a oferecer promoções, chocolatinhos com vales desconto, a trepar pelas janelas agarrados a uma corda… todos! E todos solenemente!
Irrita-me o consumismo desenfreado, esse consumismo louco que obriga toda a gente a comprar prendas para toda a gente e a retribuir a toda a gente as prendas que toda a gente lhe deu. E irrita-me que a única razão pela qual esse consumismo desenfreado se tenha moderado nestes últimos anos seja o facto de haver pouco dinheiro e, desculpe lá toda a gente, mas a gente vê-se obrigada a comprar menos prendinhas do que gostaria porque há menos dinheiro do que a gente gostaria…
E irritam-me as mil mensagens de telemóvel que recebo a desejar-me um Óptimo Natal! e um Fantástico Ano Novo cheio de coisas boas!, talvez por serem todas iguais e impessoais. Não é pelas pessoas, porque dessas eu gosto, irrita-me é que não se telefone, que não se mande um e-mail personalizado, que não se manifeste afecto pelas pessoas. Porque a mim apetecia-me verdadeiramente telefonar aos meus amigos e dizer-lhes que são importantes para mim, que gosto deles e que estou grata por nos termos encontrado nesse sentimento nobre e sublime da Amizade. Mas parece não haver lugar para sentimentos profundos, para amizades apaixonadas… só para uma qualquer bugiganga com uma etiqueta a dizer Feliz Natal.
E irrita-me que nem no Natal as pessoas sejam sinceras e honestas e atentas e dadas aos outros, mas também me irrita que o sejam só porque é Natal. E irrita-me que exista essa obrigação de se ser bonzinho, de uma bondade reles e justificada apenas pelo tão proclamado espírito natalício, e não em nome de uma qualquer ética em que se acredite plenamente. E irrita-me que esse espiritozinho natalício seja inculcado desde muito cedo nos meninos e meninas que têm de ser bonzinhos para o Pai Natal e o menino Jesus lhes darem muitas prendinhas… (Ainda se lhes fosse dito que fossem bons em nome da Bondade e do Altruísmo, do Amor, mas não!!! Devem ser bonzinhos para ter muitos presentinhos!!!)
Meu Deus, como me irrita tudo isto!!!
Passei mais um Natal na casa de todos os Natais e mais um Natal passou por mim sem que eu tenha feito nada de relevante. Dei uns quantos presentes e recebi outros tantos. Uau! Sou mesmo boa! Até comi daqueles chocolates cheios de metafísica que Álvaro de Campos disse à menina da Tabacaria que comesse…
Passou mais um Natal e eu continuo sem saber vivê-lo. Aqui, sempre aqui, onde é lindo o pôr-do-sol visto do terraço, o mar ao longe e o céu todo a mostrar-nos a nossa pequenez. E eu vejo cada vez mais o quanto esta casa foi testemunha de tantas coisas e percebo com uma serenidade mais ou menos disfarçada em tristeza como será ainda testemunha de tantas coisas…
Deste Natal guardo um momento bonito que partilhei com a minha avó. Ela sentou-se ao meu lado no frio de um fim de tarde já sem sol. Olhávamos as buganvílias que ela plantou quando veio morar para esta casa. E então recordámos as duas como eu costumava pegar nos “Balanitos de S. João”, os saquinhos de sementes da planta, abri-los e tirar-lhes as bolinhas pretas com olhos brancos. Depois ia toda lampeira plantá-las num canto do florido jardim, regando-as a preceito. De cinco em cinco minutos ia ver se já nascia um pequeno rebento… e ficava sempre triste porque das sementes que eu plantava nunca nascia uma linda buganvília.

sábado, dezembro 23, 2006

À conversa com o Principezinho...

"Deste tu a imagem de um rebanho para retratares a sociedade do meu Mundo. Pois eu acho que mais do que ovelhas somos códigos de barras. Elas ainda se distinguem pelos dentes, pela quantidade e qualidade da lã, pelo tom em que balem, pela maneira de pastar... eu comparo-nos a códigos de barras. Cada um tem o seu código e o produto que rotula é diferente mas somos todos umas riscas pretas mais grossas ou mais finas sobre um fundo branco. Somos verificados pelo filtro vermelho que nos diz se somos aceites ou não; os que são, são colocados dentro do mesmo saco de plástico e viajam sem saber para onde, o que os espera. Alguns ainda têm a coragem de saltar do saco, correndo o risco de ficarem na estrada... mas a maioria deixa-se ir e acaba esquecida num canto ou no lixo. Eu não quero ser um código de barras. A verdade é que não suporto aqueles que se enchem de perfumer e saltos e penteados e sorrisos automáticos e isto e aquilo e fazem de tudo para passar no filtro vermelho e ouvir o Bip que lhes diz que foram aceites, que podem entrar no saco, e que depois se deixam lá ficar para sempre. Impõem limites aos instintos... acabando mais tarde por rebentar ao terem que suster a espontaneidade e o lado de criança que nunca desaparece de dentro de nós tantos anos seguidos, à custa de não serem apontados e rejeitados."
Foi há anos... mas/e ainda faz algum sentido.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

O Piano Negro

Já vi muitas pessoas passar por aqui. Tantas que já lhes perdi a conta às caras, aos feitios, aos modos de beber. Sozinhas, aos pares, em grandes grupos, apenas por umas horas ou durante noites inteiras. Quantos ilustres desconhecidos não se sentaram já nas minhas mesas, quantos não se esticaram ao balcão com copos vazios cheios de mágoas? Já vi longas conversas, grandes bebedeiras, imensos choros cruzados e zangas para uma vida inteira. Já aturei parvos e parvas, já expulsei insolentes e cobardes, já ofereci bebidas e também cobrei bebidas não servidas. Já lamentei muitas cenas, já desejei outra vida, já desesperei horas perdidas na decadência… Sempre bebi para esquecer tudo isso. Agora conformo-me com o meu lugar no mundo, bebo uns copos de vez em quando. E o mais incrível é que continuo deste lado do balcão.
Deixei já de reparar nas pessoas, parecem-me todas iguais. Vêm cá todas pelas mesmas razões. Vivem fechadas em caixinhas que construíram para si, caixinhas pequenas, quadradas e obtusas em que não se podem mexer, onde não é permitido sentir, abraçar, beijar, ser impulsivo. Vêem cá queimar o estômago para sair das caixas onde se deixaram afundar. Querem liberdade para fazer coisas de que não se lembram quando acordam e querem fazê-las sem assumir a responsabilidade. E então bebem e bebem e bebem até a responsabilidade se evaporar dos seus corpos suados. E eu assisto, estúpido e indiferente. Já não me importa.
Não foi sempre assim. Antes reparava nas pessoas. Observava-as primeiro. A forma de andar, de gesticular, de olhar… tudo na sua presença e postura me dava uma ideia do tipo de pessoa que tinha na minha frente. E assim podia escolher o tipo de bebida de que gostavam, ainda antes de elas pedirem. Se não havia nada que combinasse com a pessoa, logo ali eu criava um cocktail que a deixava maravilhada. Compreendia as pessoas pela maneira de entrar, pela maneira de sentar, pela maneira como falavam comigo.
Há tempos, entrou pela porta uma rapariga. Veio sozinha e sentou-se num canto. Era baixinha, discreta. Não tinha nenhum traço especial mas era estranhamente bonita. Os olhos tinham um qualquer encanto exótico, talvez pela maneira como olhava curiosamente para tudo. Primeiro não pediu nada, depois lá bebeu um copo de Porto. Levei-lho eu próprio à mesa, com um guardanapo e tudo.
Fiquei intrigado pela sua presença; pela primeira vez não conseguia perceber alguém só pelos gestos – e os dela eram tão graciosos, tão belos! – pela maneira de andar e se sentar. “Talvez esteja à espera de alguém.” Mas ela nunca olhava para a porta e o pulso estava nu de relógio. Ficava simplesmente ali, a beber golinhos pequeninos de Porto e a olhar fixamente o vazio. A solidão emanava do seu corpo e despertava em mim uma profunda tristeza.
Começou a vir cada vez mais frequentemente. Sempre sozinha, sempre o copo de Porto. Nunca dizia nada, nunca falava com ninguém. Uma vez tentei meter conversa com ela: “Menina, olhe que a tristeza é como um cancro na alma!” Ela riu-se timidamente mas não abriu a boca. Eu sorri e voltei ao meu lugar. Nunca mais lhe disse nada.
Assim foi durante uns tempos. A rapariga vinha todos os dias, ficava no seu canto isolada. Ela vinha e bebia um copo, fixava o infinito e ninguém reparava nela se não eu. Mas ela continuava a vir e a beber e eu ficava cada vez mais intrigado com esta estranha presença.
Certo dia, ela não apareceu. Veio outro dia e outro e ela nunca mais apareceu. Ninguém reparou, ninguém deu pela falta dela. A não ser eu. Fiquei incomodado durante vários dias. A minha mulher estranhou-me em casa, achou-me esquisito. “Ando cansado, ando cansado”. A minha mulher nunca me percebeu muito bem.
Já passaram cinco anos desde que veio cá a rapariga. Nunca mais voltou desde aquele último dia. Desde esse dia que penso nela todos os dias. Não consigo esquecer aqueles raios de solidão que me impressionavam até ao mais fundo de mim. Pergunto-me o que lhe terá acontecido e não consigo deixar de pressentir algo de trágico. Afasto de mim este pensamento e quanto mais o afasto mais ele parece afirmar-se em mim como uma evidência. Esforço-me por acreditar que deixou de vir porque conseguiu sair da caixinha. Esforço-me por acreditar… embora saiba que não. Há algo de trágico em todos os Homens. Há também algo de cómico. Nalguns, o cómico é mais evidente. Noutros, o trágico leva a melhor.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

homeless

Estava frio. O nariz já se queixava, desaparecendo do campo dos sentidos. Olhava as manchas de vapor que a minha respiração desenhava no ar com o frio, que eram levemente arrastadas pelo vento. Formas sem forma. O meu olhar focou-se, por um breve instante, para lá da minha mancha de vapor. Olhavas para mim. Com os teus olhos azuis, enquadrados em vincos do tempo, em rugas bem profundas, que engelhavam a pele que vestias por cima dos ossos. Foquei de novo o cinzento. Tentei abstrair-me. Aproximaste-te. Tiraste a carteira do bolso e, interrompendo e desfazendo o volume de vapor que se formava naquele momento, mostraste-me o teu cartão de identificação. Foram dois segundos... nem te vi o nome. Vi o que querias. O número 613 em preto carregado. "O 613 sou eu... lá em Lisboa." Sorri. Percebi-te. Nesta noite, precisavas de conversar. Relembrar a tua vida, que receavas começar a perder aos poucos, pelos recantos da rua onde passavas as noites. E eu era a tua ouvinte. Aos poucos, evitando prender demasiado os teus nos meus olhos, foste contando. Já tinhas sido alcoólico. Foi isso que te destruiu a família. A vida. Lamentavas aquele amigo das Químicas que era um bêbedo. Que só arranjava problemas. E que quando finalmente conseguia uns trocos, diluia-os num copo sujo. Tu não! Não eras assim! Tu não bebes! Não bebes! Repetiste-mo vezes sem conta. Falaste de Lisboa. Mas não! Não eras de lá! Eras da terra do Pinto da Costa. Que, disseste tu, às quartas te ia dar comida. A ti e aos teus amigos! Ia ele próprio! De avental! De Lisboa não gostavas. Era perigoso. Demasiado perigoso. Os viciados (quer no alcool quer noutras drogas) não te deixavam dormir sossegado no teu cartão e tentavam até roubar o teu cobertor. Ali, em Coimbra, era bom. "Cidade em que há paz, tá a perceber?". Fazias os teus trabalhitos. Limpar umas entradas de casa, uns galinheiros, guardar uns troquitos e ir aceitando a comida que te davam. Falavas das raparigas que te acordavam para te trazer o jantar e de como tu, meio ensonado e desconfiado, torcias o nariz ao embrulho. "Que eu não aceito comida de ninguém.... (riste-te)... sabe porquê? Porque, de vez em quando, já tenho a abrriga cheia!(riste-te com gosto. Eu ri-me também)". às vezes dás um salto a Lisboa e outras vezes ao Porto. Tens no bolso nove números de telemóvel de camionistas que te levam à boleia. Silêncio. Lembras-te da tua mulher. Que fugiu com um sacana e os 2700 contos que tinhas no banco. Se a tivesses apanhado, ainda tinhas feito uma asneira. Dizias, meio triste. E o teu filho. E a tua nora. E a tua neta. "Até gostava de ver a miuda". Aí arrisquei... " Então e por que não? Vá vê-la. Até sabe onde ela mora!". Não quero que tenham pena de mim. Estou bem. O problema dos homeless (como dizias, tentando testar o meu inglês) é que se habituam. Depois não querem sair da rua. Já me ofereceram casa. Que até tinha televisão. Mas não. Na rua és livre. És só. És tu. Contaste-me mais uns episódios. Meninos ricos na rua. pfff! rias-te com algum desdém. Navalhadas que levaram amigos teus para o hospital. Até a história daquele pobre que não tinha uma perna e andava com duas moletas. Em lisboa, roubaram-lhe uma. Sacanas! É coisa que se faça? ciciavas do fundo da alma. Disseste-me onde vivias agora. Com casa-de-banho privativa e tudo! ri-me com a tua boa disposição. Virei-me por um instante para prestar atenção a alguém que a pedia e quando me voltei para ti, tinhas ido embora. Nem fiquei a saber o teu nome. Talvez um dia destes te visite no teu cartão. Te conte uma história bonita de um homem que se perdeu no alcoól e se achou na rua. Que adormeceu num cartão mas acordou na vontade de querer ir trabalhar e refazer a vida. No fundo, não és independente. Nem livre. Nenhum de nós o é, verdadeiramente. Nem tu. És só. Isso sim. És só. A rua acolhe-te porque é só também. A cidade acolhe-te porque ainda não há muitos como tu. A sociedade rejeita-te porque talvez ela precise também que lhe interrompas as suas manchas de vapor. Até sempre.
Para o caso de duvidarem, o 613 é mesmo, agora, meu amigo. : )

domingo, dezembro 17, 2006

Devaneio aberto

Às vezes as pessoas parecem-me enormes portas amarelas, com faces estendidas ao sol e arestas escondidas na sombra. Não percebo ao certo as partes que as assombram, nem quais as zonas que querem iluminar. Em certas portas, pergunto-me se o que a luz ilumina não é apenas a face mais tangível dessa fresta e se o que de mais interessante há nelas não está remetido para o canto mais escuro. Sei que existem varandas de prata com janelas abertas para o mundo. E uma imensidão de portas de todos os tipos…
Há muitas portas fechadas, muitas portas escondidas nas sombras. Nessas, quase tudo é insondável. As fechaduras existem, mas as chaves estão guardadas a mil chaves num qualquer recanto inacessível aos outros.
Há também portas tão iluminadas e tão proclamadamente abertas que se nota sempre a camada de verniz. Ou o código de barras colado na testa. E essas fazem bip quando passam na máquina do Jumbo e os donos das portas ficam todos contentes porque encaixam nas dobradiças da sociedade.
Há ainda portas que se ficam pela parte solarenga, que têm maçanetas de ouro, que se vestem todos os dias e arranjam o cabelo e se maquilham e aquecem a voz e põem a máscara e entram em cena para mais uma representação.
Há portas que têm medo de sair à rua e por isso deixam-se enferrujar nas traseiras da vida com medo do que as outras portas acharão delas. Encolhem-se debaixo da eterna tempestade em que vivem com medo de perder a única coisa que têm: elas próprias.
Há portas que nadam à superfície. E sofrem com as bolhas de água que nascem e morrem no mesmo dia, sem nunca questionar o borbulhar dessa água em que nadam despreocupadamente.
Há portas duras de sentido.
Há portas que se pavoneiam todos os dias.
Há portas que se adoram.
Há portas que se pensam portões.
Há portas que se vêm postigos.
Há portas que chiam.
Há portas que sabem tudo.
Há portas grandes,
Portas pequenas,
Portas altruístas,
Portas megalómanas,
Portas tímidas,
Portas zangadas,
Portas entreabertas,
Portas assustadas,
Portas enferrujadas,
Portas impulsivas,
Portas raivosas,
Portas amargas,
Portas cheias de si,
Portas vazias,
Portas preocupadas,
Portas descontraídas,
Portas verdes,
Portas utópicas,
Portas inseguras,
Portas medrosas,
Portas maduras,
Portas indisciplinadas,
Portas arrumadinhas,
Portas escancaradas,
Portas irritadiças,
Portas de vidro,
Portas inchadas,
Portas tristes,
Portas assim,
Portas assim,
E assim,
E assim,
E assim…

Só não há portas certas e portas erradas.

terça-feira, dezembro 05, 2006

Frio

"Saí.

O vento frio ocupou os meus pulmões
não me deixava aquecer.
a rua, roxa de frio,
estava abandonada
ao escorregadio da calçada
e à falta de pés a percorrê-la.
Ia devagar.
o corpo queixava-se
libertava vapor
estremecia
avisando-me do frio
mas eu
ia devagar.
Estava a precisar de me sentir frio.
Estava a precisar de acordar.
Estava a precisar que o frio
daquela rua,
daquele dia,
me fizesse sentir nu
desprotegido
só.
o frio
incomodou-me
desacomodou-me
do quentinho ludibrioso
da ilusão.
percebia agora que estava farto de mantas
do quente
do calor
de sufocar.
Estava farto de mim.
Farto de não conseguir crescer
debaixo de tudo aquilo que me aquecia,
me dava prazer,
que me fazia sorrir
que me fazia relativizar tudo
que me afastava de mim próprio.

Constipei-me.

Mas
E
mudei."

Graça Soares

Não sei por que o publico.
Acho que simplesmente me faz lembrar alguém.
Ou melhor, um momento de alguém, que já passou.
: )