quinta-feira, dezembro 28, 2006

Natal aqui

Os meus avós estão velhinhos. Estão mais enrugados, mais pequenos, mais baixinhos e mais casmurros. E eu gosto cada vez mais deles. Talvez só percebamos o valor de coisas e de pessoas quando se torna evidente que elas vão desaparecer. Não é novidade. É simplesmente evidente.
Passei mais um Natal nesta casa de todos os meus Verões, de infância e adolescência, nesta casa onde joguei futebol, brinquei com Barbies e Kens, onde fiz puzzles, assaltei galinheiros, fui polícia, escondi-me, apanhei a minha irmã, corri e saltei, fiz cordelinhos de lã e brinquei com os milhares de gatos que por aqui passaram, parti copos e plantas, tomei banho de mangueira e mergulhei no enorme alguidar de plástico vermelho, nesta casa onde esmaguei formigas e fiz experiências com lama, onde cozinhei folhas e flores e as servi aos meus pais no restaurante que abri e fechei com a minha irmã… e tantas outras brincadeiras e tantas outras asneiras que criança que as não faz não é criança. Como gostava de ver agora esses tempos do lado de fora, rir-me como terão rido os meus pais e avós com duas crianças marotas levantando o pó dos cantos à casa!
Passei mais um Natal nesta casa de memórias. Recordo alguns Natais muito nitidamente, como se gravados a ferros no meu espírito… outros nem tanto. Os mais bonitos vivi-os quando o Pai Natal descia pela chaminé. A magia de acordar de madrugada ao fim de uma noite mal dormida na expectativa… e depois abrir os presentes em êxtase! Só a verdade crua cortou a magia. E de ano para ano o Natal tornou-se mais pesado. A magia do Pai Natal fugiu e deu lugar a um estranho sentimento de culpa… um sentimento de culpa por ter tanto, por receber presentes, por comer bacalhau na consoada e galinha caseira no dia de Natal, por estar em casa e quentinha, por ter família, por estar aqui… E ao mesmo tempo saber tanta gente nas ruas, na fome, na solidão, na pobreza extrema… E saber que há quem se suicide nesta época, saber que há quem chore, quem trema, quem sofra. Eu não gosto do Natal. Incomoda-me. Incomoda-me porque me sei acomodada a muitas coisas. Porque tento sempre fazer algo de importante e nunca consigo. Incomoda-me porque se tornam evidentes a hipocrisia e as contradições humanas. Mas além de me incomodar, irrita-me. E há coisas que me irritam profundamente no Natal.
Irritam-me os Pais Natal de todos os tipos, de plástico, de vidro, de cartão, de carne e osso, a oferecer promoções, chocolatinhos com vales desconto, a trepar pelas janelas agarrados a uma corda… todos! E todos solenemente!
Irrita-me o consumismo desenfreado, esse consumismo louco que obriga toda a gente a comprar prendas para toda a gente e a retribuir a toda a gente as prendas que toda a gente lhe deu. E irrita-me que a única razão pela qual esse consumismo desenfreado se tenha moderado nestes últimos anos seja o facto de haver pouco dinheiro e, desculpe lá toda a gente, mas a gente vê-se obrigada a comprar menos prendinhas do que gostaria porque há menos dinheiro do que a gente gostaria…
E irritam-me as mil mensagens de telemóvel que recebo a desejar-me um Óptimo Natal! e um Fantástico Ano Novo cheio de coisas boas!, talvez por serem todas iguais e impessoais. Não é pelas pessoas, porque dessas eu gosto, irrita-me é que não se telefone, que não se mande um e-mail personalizado, que não se manifeste afecto pelas pessoas. Porque a mim apetecia-me verdadeiramente telefonar aos meus amigos e dizer-lhes que são importantes para mim, que gosto deles e que estou grata por nos termos encontrado nesse sentimento nobre e sublime da Amizade. Mas parece não haver lugar para sentimentos profundos, para amizades apaixonadas… só para uma qualquer bugiganga com uma etiqueta a dizer Feliz Natal.
E irrita-me que nem no Natal as pessoas sejam sinceras e honestas e atentas e dadas aos outros, mas também me irrita que o sejam só porque é Natal. E irrita-me que exista essa obrigação de se ser bonzinho, de uma bondade reles e justificada apenas pelo tão proclamado espírito natalício, e não em nome de uma qualquer ética em que se acredite plenamente. E irrita-me que esse espiritozinho natalício seja inculcado desde muito cedo nos meninos e meninas que têm de ser bonzinhos para o Pai Natal e o menino Jesus lhes darem muitas prendinhas… (Ainda se lhes fosse dito que fossem bons em nome da Bondade e do Altruísmo, do Amor, mas não!!! Devem ser bonzinhos para ter muitos presentinhos!!!)
Meu Deus, como me irrita tudo isto!!!
Passei mais um Natal na casa de todos os Natais e mais um Natal passou por mim sem que eu tenha feito nada de relevante. Dei uns quantos presentes e recebi outros tantos. Uau! Sou mesmo boa! Até comi daqueles chocolates cheios de metafísica que Álvaro de Campos disse à menina da Tabacaria que comesse…
Passou mais um Natal e eu continuo sem saber vivê-lo. Aqui, sempre aqui, onde é lindo o pôr-do-sol visto do terraço, o mar ao longe e o céu todo a mostrar-nos a nossa pequenez. E eu vejo cada vez mais o quanto esta casa foi testemunha de tantas coisas e percebo com uma serenidade mais ou menos disfarçada em tristeza como será ainda testemunha de tantas coisas…
Deste Natal guardo um momento bonito que partilhei com a minha avó. Ela sentou-se ao meu lado no frio de um fim de tarde já sem sol. Olhávamos as buganvílias que ela plantou quando veio morar para esta casa. E então recordámos as duas como eu costumava pegar nos “Balanitos de S. João”, os saquinhos de sementes da planta, abri-los e tirar-lhes as bolinhas pretas com olhos brancos. Depois ia toda lampeira plantá-las num canto do florido jardim, regando-as a preceito. De cinco em cinco minutos ia ver se já nascia um pequeno rebento… e ficava sempre triste porque das sementes que eu plantava nunca nascia uma linda buganvília.

1 comentário:

Anónimo disse...

tocaste-me a alma e sorri ao ver um bocadinho dessa tua infancia e avos.

RC