sexta-feira, março 30, 2007

Dommage à deux

Eu era muito nova e ele tinha o charme de ser mais velho. Eu era muito nova e não sabia nada da vida e no olhar dele lia uma espécie de sabedoria tranquila. Eram duas avelãs, os olhos dele, bem escuros, bem lindos, bem profundos. Fitavam-me como dois faróis, invadiam-me a intimidade e deixavam-me nua, desprotegida, sem jeito. Ele tinha o charme de ser mais velho, tinha o charme no sorriso, em toda a boca, no sinal no queixo, no nariz torto, na barba por fazer… e tinha ainda o charme de me ouvir no meu embaraço e de me fazer sorrir, sorrir por dentro, rir por fora, tolinha. Ele tinha tudo, tudo… Eu era muito nova e ele tinha esse charme de ser homem.

Como nos conhecemos? Não importa. Na sua contingência, as histórias de amor são todas iguais. Há o momento do encontro, da atracção, do enamoramento, da paixão, do desejo… a ordem é mais ou menos indiferente, não há ordem no caos do amor. Às vezes é tudo ao mesmo tempo, outras vezes são parcelas de todos esses momentos, misturadas como peças de um puzzle em construção.

Conhecemo-nos num concerto, através de um amigo comum. Talvez importe, afinal – quem sabe? Há em todas as coisas a possibilidade infinita de ser uma infinidade de coisas. Talvez tivesse sido diferente se nos tivéssemos conhecido num bar. Ou no cinema. Ou na faculdade. Ou num outro lugar qualquer. “Olá, a tua cara não me é estranha. Conheço-te de algum lado?” Mas não foi assim.

Aconteceu tudo tão depressa… Eu flutuava, flutuava, vivia à beira de um precipício encantado onde o desejo e o risco se entrelaçavam. Era uma sinfonia, uma sinfonia! Uma sinfonia de sensações dispersas, de sentimentos de diferentes tonalidades e no fim, oh no fim, tudo se conjugava na mais bela música que já sentira dentro de mim. Êxtase, êxtase, e o ciúme, e o ciúme… A admiração babada daquele ser caído dos céus, as mãos, as suas mãos hábeis, os dedos lindos que imaginava em carícias, as mãos perfeitas e mágicas que faziam ilusionismo diante dos meus olhos… a vertigem da proximidade… o abismo da distância… a adoração…

O fim. Apaixonou-se – disse com a maior das latas – por outra rapariga. Estava completamente apaixonado por ela e eu a olhar para ele e já não havia mais ninguém. Eu olhava para ele e ela desaparecia quando ele olhava para mim, eclipsava-se quando conversávamos, morria quando ele me tocava ao de leve no braço. Mas ele agora tinha namorada. E eu odiei-os. E pensei que morria.

Não fui a única. Havia mais alguém que chorava o que eu chorava, que sentia o que eu sentia. Alguém que, como eu, recolhia os cacos do desgosto para debaixo do tapete do amor e aguardava em sofrimento que passasse o tempo, que passasse o luto. Mas ele tinha acrescido o peso do preconceito, o grilhão da sociedade e as suas lágrimas eram reprimidas. E o meu amigo chorava comigo a perda do mesmo homem. E eu era muito nova e ele não era assim tão novo e ambos chorávamos a perda de um homem mais velho. Estranhamente, encontrámos algum conforto no sofrimento mútuo, no carinho mútuo e fraternal. E ele disse-me: “Sabes Sofia, se eu fosse heterossexual, ficava contigo”. E eu disse-lhe “e eu, se fosse homem e homossexual, ficava contigo”. E rimos os dois feitos parvos, entre lágrimas salgadas e lágrimas perdidas. C’est dommage. Mas a vida continua.

quarta-feira, março 28, 2007

O lirismo é uma espécie de doença crónica

O lirismo é uma espécie de doença crónica, instalada no ventrículo esquerdo, incrustada numa qualquer membrana de que não sei o nome porque não estudo medicina. O lirismo é uma praga, uma chaga que arde constantemente e cujo principal sintoma é a compaixão. O estado lírico é um estado gelatinoso, uma ligeira impressão no peito, que se manifesta sob o som interno “baque” e deixa o paciente numa disposição melancólica e nostálgica. Episódios deste tipo são frequentes em doentes líricos em situações de alguma carga emocional. É muito frequente, por exemplo, entrar neste estado emocional quando se encontra um velhinho ou uma velhinha na paragem de autocarro e se ouve a narração breve (ou não tão breve assim) da história de uma vida inteira. Ou quando o mesmo velhinho ou velhinha não conseguem subir para o autocarro e precisam de uma mãozinha. Muitíssimo comuns são também manifestações líricas sob a forma de sorriso rasgado ou mesmo uns sons do estilo “ohhhhh” na presença de crianças e bebés, afectando esta forma de lirismo mais o género feminino do que o masculino. O contacto com a natureza e o ar puro tem o mesmo efeito em doentes líricos, causando invariavelmente um momentâneo estado depressivo quando os sintomas físicos alteram os químicos no cérebro e os pensamentos dos indivíduos.

Não se conhece nenhuma cura para esta espécie de doença crónica. Há quem diga que não há mesmo possibilidade de cura e que a única maneira de sublimar esta condição é através da arte, qualquer que seja a sua forma. Claro que a arte de viver não conta, porque é a principal causa desta eterna condição lírica.

terça-feira, março 27, 2007

Querer e poder.

Fruto de muitos futuros, sou quem sou.
De futuros já passados, de futuros ainda presentes, de futuros ainda futuros.
Sou raiz e um pouco de caule. Sonho já com o resto.
Com as folhas, com os espinhos, com o verde, o amarelo,
com a flor, com o fruto, com o castanho. Com a seiva
de que me quero alimentar.
Eu fui sendo, sou sendo e serei sendo.
É ao ser que serei.
É ao querer ser que conseguirei serei.
Não sou o que me deixam que seja.
Eu sou, com a raiz que já tenho e o caule que começo a ser, o que quero ser.
Se depender de mim e, claro, de Quem me rega, serei quem sonho ser. Quem quero ser.
Está nas Nossas mãos.
Sem grande sentido... nao me importa.
Tchim tchim às conversas e ao chá!
; )

terça-feira, março 20, 2007

Music. The art of the heart.

Respirar fundo mais uma vez. Outra. Mais profundamente ainda. Tentar fazer com que o nervoso que prende a minha voz largue o meu corpo através deste suspiro. Fico calma por cinco segundos para voltar de novo ao mesmo. Não faz mal. Penso eu. Eu safo-me. No fundo, safo-me sempre. Como é que uma arte me dá tanto trabalho e ainda é exigente quando a manejo. Traz com ela um largo e espesso manual de instruções que eu vou demorar ainda muito mais tempo do que o que já gastei para o ler. Horas. Horas a fio. Sozinha. Com ela. Com esta arte que exige trabalho e tempo. Seja pelas cordas do violino seja pelas cordas da voz. Duvido sempre dela nestes momentos. Vale a pena esta ansiedade que me oprime os sentidos? Este nervoso que me tira até a força para aguentar os meus joelhos sem tremer? Este zumbido nos ouvidos que ause nem me deixa ouvir mais nada? Vale a pena as horas gastas no meu quarto, submersa em estudo? Valem a pena as 13 horas no Conservatório? Valem a pena os momentos de família e amigos que acabo pr perder por causa deste dever? "E agora vamos ouvir uma música chamada O anjo que foi composta por Wagner". Levanto-me. Sou eu. Quase que me encosto à curva delgada do piano de meia cauda e firmo a mão no tampo. Assim sinto-me segura. Troco um rápido olhar com o pianista... Estou pronta. Soam os primeiros acordes e eu entro. Meio torta no início, a voz falhou-me (maldito frio), mas endireito-me. Penso no que canto. No anjo com que eu sonhava quando era mais miuda. Momentos mais leves, momentos mais pesados, mais ansiosos, mais pacíficos... tento passar o que sinto ao público através desta arte matreira. Acabo. Pelas palmas, vejo que consegui. Boa. "Cada palma que se ouve do público são 375 lágrimas choradas por nós em casa", já dizia o meu mestre. É verdade. É mesmo verdade. Voltei ao meu lugar. Vale a pena. Definitivamente, vale a pena. Como pude chegar a duvidar?

sexta-feira, março 16, 2007

A felicidade é a minha vizinha de cima

Comprador: Boa tarde.

Vendedor: Boa tarde. Em que posso ajudá-lo?

C: Queria 2kg de felicidade, por favor.

V: Desculpe?

C: Queria 2kg de felicidade.

V: Felicidade? O senhor não estará equivocado?

C: Não, não – apenas desejo comprar 2kg de felicidade.

V: Sim, mas nós não vendemos felicidade.

C: Não?

V: Não.

C: Ah.

V:

C: Então como explica a placa lá fora?

V: Qual placa?

C: Aquela placa ali ao pé das maçãs: “Há felicidade”

V: O senhor só pode estar a brincar comigo…

C: Por amor de Deus, não!

V: Ó homem, deixe lá Deus que Ele não é para aqui chamado. O senhor não vê que isto é uma mercearia?

C: Vejo, mas a placa não engana ninguém: aqui vende-se felicidade. Quanto custa?

V: Já lhe disse que isto é uma mercearia! Se quiser maçãs, laranjas, bananas, couves, ovos, bolachas… tudo isso eu tenho para dar e vender. Sobretudo para vender. Agora felicidade…. Ó homem, se se vendesse felicidade não haveria nem um grama em stock e toda a gente andava para aqui com sorrisos parvos na cara!

C: Isso quer dizer que não vende mesmo felicidade?... Mas e a placa?

V: E ele a dar-lhe com a placa… Lamento desiludi-lo, mas aqui – nem que eu saiba em lado nenhum – não se vende felicidade. Agora a placa… a placa! Às tantas pensou que viu a placa e agora está convencido que a viu mesmo! Se quiser vamos lá fora confirmar que não há placa nenhuma.

C: Pronto, deixe lá a placa… eu só queria mesmo era um bocadinho de felicidade… sabe, ando tão abatido, tão em baixo… os meus amigos dizem-me todos que eu tenho que me animar, que tenho é de pensar positivo… eles têm razão mas eles não sabem…

V: Pois é, pois é, toca a todos. E olhe que há quem esteja pior, há quem esteja pior….

C: Duvido. Não imagina como me sinto… a minha vida é um pesadelo. Nem imagina o difícil que é ser eu… eu só queria um cheirinho de felicidade… nem precisavam de ser 2kg, bastava-me um bocadinho…

V: Pronto, homem, não fique assim! Olhe, fazemos o seguinte: eu tenho aqui uma garrafinha de vinho que é uma maravilha. É a mais cara que tenho aqui, mas como o senhor está tão abatido, até lhe faço um desconto. O senhor leva uma garrafinha e se quiser leva até um queijinho – o senhor gosta de queijo? Ah, óptimo, óptimo, estou a ver que é boa boca! – e fica metade por conta da casa. Está a ver, afinal é o seu dia de sorte! Vai para casa, come e bebe este petisco e olhe que até fica com a barriga cheia de felicidade!

C: É muito generoso da sua parte… tem a certeza?

V: Veja lá, não me faça mudar de ideias! Olhe que eu nem me conheço, já se lá viu eu alguma vez oferecer meia garrafa de vinho… aproveite, aproveite homem que não sei o que me deu hoje.

C: Já que insiste… não é que tenha muita fome, mas um queijinho sabe sempre bem. Vai ser uma boa surpresa para a minha namorada.

V: Está a ver, até já fala em mulheres! Assim é que eu gosto!

C: É, a minha Paula é muito importante para mim… Coitada, ela sofre muito com a minha infelicidade…

V: Pois é, homem, é para o bem e para o mal. Andamos cá todos uns para os outros, não é? Mas olhe que era o que eu lhe dizia há bocado, ainda bem que assim é, acredite. Já viu o que era se andássemos sempre a saltitar de alegria? Caramba, nem quero imaginar! Se a minha Dulce não tivesse crises de irritação eu não tinha um momentinho de descanso… Mas olhe que eu também não sou fácil, está a perceber?... Também sou de mau génio e às vezes também me arrasto para aí muito infeliz. É a vida, homem. A infelicidade de uns é a felicidade dos outros.

C: Não percebo como pode dizer isso… Eu não fico feliz por os outros andarem infelizes, eu fico infeliz é por andar infeliz… e também tenho pena que os outros andem infelizes e isso faz-me sentir ainda mais infeliz. Por isso é que eu acho que deveria haver felicidade para dar e vender. Sobretudo para dar, porque a felicidade deveria ser gratuita…

V: Ó homem, como se houvesse alguma coisa grátis neste mundo!

C: Ah, o senhor é um daqueles pessimistas iluminados. Olhe, antes eu conseguisse ser assim também… mas eu sou um pessimista que anda sempre na escuridão.

V: Deixe lá, homem, há sempre um queijinho para iluminar o caminho. E quando não há queijo, há presunto! Prefere de cabra ou de vaca?

C: Hum… não sei… talvez de cabra…

V: Ah, é cá dos meus! Eu também prefiro de cabra, é mais intenso, mais saboroso. Então vá que já lhe arranjo o embrulhinho. Está a ver, não comprou felicidade mas leva aqui um belo pedaço de queijo!

C: É verdade, é verdade…

V: Vê, até já leva um sorriso na cara!

C: Sabe, ainda bem que passei aqui. Espero não tê-lo incomodado.

V: Ora essa, homem, não incomodou nada!

C: Depois digo-lhe o que achei do queijo.

V: Fico à espera. Para a próxima leva outro!

C: Combinado. E já agora, quanto custam dois dedos de conversa?

quarta-feira, março 14, 2007

Deixa lá, há quem esteja pior do que tu

O conforto ridículo que se sente na desgraça dos outros é desumanamente humano.

quinta-feira, março 08, 2007

Não vale a pena comprar celofane

Embrulhei o meu coração em papel celofane para o proteger de toda e qualquer forma de dor. Um dia, quando tentei tirar o papel, ele estava demasiado agarrado à carne e foi impossível descolá-lo. Arranquei pedaços do papel à força e foi assim que fiquei com o coração desfeito. Foi nessa altura que percebi que seria melhor ter um tijolo a bater no peito em vez desse relógio de corda. Mas isso não seria nada prático, porque estaríamos constantemente com um enorme peso no peito.
Mais tarde, o tecido do coração foi crescendo e recuperando consistência. Creio que os restinhos de papel foram absorvidos pelo corpo e o coração cresceu desmesuradamente, sem a obstrução do papel. Tive medo de ter um coração desprotegido, em jeito de flor abandonada ao vento norte. Pensei em pô-lo numa redoma de vidro, impecavelmente higiénica e transparente. Mas eu não queria ser uma flor rabugenta e cheia de espinhos. Não encontrei uma solução e deixei, a medo, o coração ao natural.
Um dia o meu coração encontrou outro coração e brincou com ele. Riram os dois feitos loucos e bateram descompassadamente. Reparei depois que o tecido fino que envolvia o meu coração estava mais forte e que, quanto mais ria e aparvalhava com outros corações, mais esse tecido se entrelaçava em si e nos outros.
Às vezes rasgavam-se os tecidos e isso fazia o coração ficar outra vez pequenino. Queria cobrir-se de celofane, confessava. Mas eu dava-lhe dois pares de estalos e dizia-lhe que não, que não o queria enterrado na mortalha transparente. Ele não percebia, mas eu sim.
Embrulhei o meu coração em amor para que ele batesse descompassadamente ao saber a vida, ao sabor da vida, ao longo de uma longa e desejada vida.
E nunca mais comprei papel celofane.

segunda-feira, março 05, 2007

Imperativo 34

As montras são todas lindíssimas, cheias de luzes de todas as cores, muito modernas, muito in. Nelas pairam corpos esculturais sem cabeça, que exibem casacos muito fashion e calças de ganga afuniladas em coxas esbeltas. Os preços são mais baixos numas, mais altos noutras mas o IVA é sempre a 21%. E o imposto uniforme sobre o valor acrescentado é tão uniforme como a uniformização da moda e dos padrões de beleza.

Em todas as lojas de um qualquer centro comercial encontram-se as mesmas peças, com ligeiras variações. Consomem-se em massa peças de roupa todas iguais que pairam nas ruas em corpos diferentes, e que caminham todos contentes porque afinal são iguais. O problema é que a cobertura não muda o recheio do bolo e não é por usarmos as mesmas roupas que temos corpos iguais.

Mas a verdade é que lá estão os manequins nas montras, lá estão as beldades nos filmes e nas séries a exibir-nos formas perfeitas, dimensões irrealistamente proporcionais. Os deuses gregos caminham neste Olimpo de perfeição computorizada e a sociedade mastiga esse ideal de beleza e cospe-o sob a forma de imperativo. O imperativo 34.

Claro que há imensos tamanhos, todos sabemos isso. Mas os tamanhos variam imenso e de cada vez que levo dez pares de calças de ganga para os provadores e saio de lá sem que nenhum me tenha servido apetece-me esganar todas as modelos do mundo. O imperativo 34 é omnipresente e, mesmo quando os pares de calças são maiores do que isso, está lá. Desconfio até que começaram a fazê-las mais pequenas só para nos fazer sentir gordas. Marotos!

Preocupante é quando uma ida às compras como esta arrasa as pessoas. Preocupante é quando o imperativo 34 leva a anorexias e a bulimias ou meras baixas auto-estimas e vergonhas de si. Preocupante é não sermos capazes de perceber a riqueza da diferença e a beleza da individualidade dos corpos.

Sempre que vou às compras e me sinto ameaçada pelo imperativo 34, apetece-me abastecer a minha despensa de bolachas e chocolates e ir vegetar para o sofá: obedeço ao imperativo do prazer momentâneo (que depois sedimenta sob a forma de culpa na barriga e nas pernas) só para deitar a língua de fora ao imperativo 34!!!

Aqui está um bom exemplo da beleza perfeita e computorizada! A campanha da Dove "Por uma beleza real" foi a melhor campanha publicitária dos últimos tempos. Só é pena que iniciativas como esta, que são verdadeiramente de louvar, sejam tão raras...

domingo, março 04, 2007

Waited for Tom

Tom Waits é um mundo que se me abriu por acaso quando por acaso um CD dele me veio parar às mãos. Um álbum com um rapaz de uma sensualidade imensa, encostado a um carro com um cigarro na mão e sobrancelhas franzidas, bem à época. As letras azuis diziam Tom Waits, "Used Songs 1973-1980". Eu ainda nem existia... Gostei do rapaz da capa. Acho que foi amor à primeira vista.

Apaixonei-me pelo homem aos primeiros acordes. Que voz! Que espanto! Que rasgos de genialidade! Uma voz tão versátil que não parece a mesma de música para música, que ora canta e é doce e quase lamechas, ora grita, arranha as cordas vocais, sussurra, fala, murmura... incrível... genial!

Não é uma voz - são muitas.

Não é um estilo - são muitos (mas é só um, é só um... o dele).

Não é uma maneira de cantar - é uma maneira de fazer arte.

Agora, continua a lançar álbuns e está um senhor de respeito e olho azul!

quinta-feira, março 01, 2007

Reverentíssimo professor

Ele entrou solene na sala e com ele entrou o silêncio. Sem olhar sequer para os míseros subordinados sentados nas primeiras filas, dirigiu-se majestosamente ao quadro, sobrolho franzido e lábios apertados, numa expressão terrivelmente assustadora. Foi com assombro que o vi pegar num pedaço de giz e, em gestos tremidos e vagarosos, começar a escrever umas linhas numeradas. Quase me vieram as lágrimas aos olhos ao lembrar-me dos stores do ensino básico a escrever o sumário! Oh, saudade!
Pousou o giz e dirigiu-se à secretária de mogno (ou de outra madeira qualquer, mas gosto desta palavra: mogno) onde estavam já comodamente instalados um copo e uma garrafa de água do Luso. Ainda de pé, sempre com a expressão medonha na cara, com as sobrancelhas unidas por uma ruga tremenda e os lábios apertados contra o nariz, onde lhe caem perfeitamente os óculos míopes, ele esfrega com a mão esquerda os dedos da mão direita, embranquecidos pelo pó do giz. E continua o gesto obsessivo até que se senta, pesado, na cadeira reverencial de catedrático. Que excelente dinossauro!
Abre então a boca, descontraindo por momentos os lábios carnudos e avermelhados, e deixa ver uns dentes muito brancos, muito direitos. As suas sapientíssimas palavras atropelam-se umas às outras num magnífico jorro de conhecimentos que, se lhes fizéssemos fast forward, seriam de facto interessantes. Mas não. O único ponto de interesse é quando ele se lembra de dar um ar da sua graça e, esquecendo por momentos o modo solenidade, se ri de uma qualquer coisa que disse, voltando a mostrar o sorriso Pepsodent e alisando a ruga gigante que lhe contorce toda a expressão. Convém só dizer que o seu riso é apenas isto: alisar a ruga entre os olhos e mostrar os dentes brancos. Não há cá sons, nem paragem para os ecos do riso, nada disso! O direito é um assunto muito sério.
Chega o final da prelecção (aula é demasiado banal para o reverentíssimo professor) e ninguém se mexe. Espantada, pergunto ao amigo sentado ao meu lado num tom quase inaudível: “Ninguém sai antes de ele se levantar?” Ele abana a cabeça. Para um lado e para o outro. Meu Deus!