terça-feira, dezembro 13, 2005

Gosto de ti

Gosto daqueles dias de Inverno em que o Sol, contra o frio, contra o vento e contra a vontade dos deuses, se insinua docemente sobre a harmonia das coisas. E, quase num finca-pé divino, alastra sobre o mundo os seus raios gelados, porque, por mais vontade que tenha de desafiar o frio, este existe, e está aqui e não desiste de ganhar ao sol esta disputa. Gosto da beleza exótica que esta luta proporciona: a combinação entre a brisa fresca, que trava e liberta os pulmões, e o sol docinho que amorna a pele… Hum… divino…

Fico imóvel, deixando o pensamento discorrer livremente, como esta aragem fininha que me beija os cabelos. Ouço o silêncio da concentração total, mas, mal tenho consciência dela, perco-a. Começo então a ouvir os ruídos do mundo: vozes… masculinas, femininas juntas, sozinhas… gravilha… passos – alguém caminha. Talvez uma caminhada apaixonada? Beijos, abraços, palavras lindas e carícias à alma…

Irrompe então o tic toc dos saltos altos… passo apressado em compasso alterado. Tic toc, tic toc, tic toc, tic toc, tic toc, tic toc – tic – toc – tic – toc – tic toc, tic toc, tic toc; alguém pigarreia. Qual será o motivo? Quer clarear a garganta ou quer ser ouvido? Calou-se, talvez ouvindo os meus pensamentos interrogativos. Desculpe, amigo, não quis interromper o seu pigarrear. Estou desculpada? Engraçado, o silêncio desapareceu completamente, mas a concentração cá está. Virei-me do avesso. Agora ouço é os sons deste espaço e não as minhas vozes interiores. Oh, eu até estava a gostar de me ouvir! Chiu! Chiu! Quero ouvir-me outra vez! Quero ouvir as minhas vozes! Mas?... Espera, agora ouço ao longe o burburinho de uma multidão. É um ruído de fundo, desagradável; agora que penso nisso, é quase infernal! Ai! Até ensurdece a minha mudez! E aumenta e aumenta e aumenta e já não ouço mais nada se não a multidão! Ah, calem-se por favor! Poupem-me às vossas conversas de circunstância que nem ouço mas que adivinho desse som contínuo e indiferenciado produzido pelas vossas cordas vocais, como se vos ouvisse individualmente! Pa ta ti pa ta tã! Como a comunicação é às vezes tão absurda e às vezes tão essencial! E como são tão débeis os canais de comunicação!... Ah, poder desligar o botão que me faz ouvir a multidão… não ouvir mais esta estranha mistura de sons e poder concentrar-me apenas no que realmente interessa…

Parece que o sol se foi embora. E a minha vontade de escrever foi com ele. Ainda hoje me pergunto por que somos tão voláteis e incompreensíveis. Quem me dera ser a brisa fresca que me beijou hoje os cabelos. Assim não tinha de pensar em nada, nem de construir relações, nem de alimentar afectos. Bastar-me-ia chegar de mansinho perto das pessoas e, sem magoar ninguém, beijá-las carinhosamente, como quem pisca o olho maroto e diz “Gosto de ti”.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Pego no violino...

Pego no violino e respiro fundo. A penumbra ajuda-me a esquecer um pouco os nervos. Enquanto as violas dedilham uns primeiros acordes eu experimento discretamente algumas notas soltas num pizzicato surdo para relembrar a tonalidade. Lá menor. ok. Ajeito-o debaixo do queixo e inclino a cabeça, enquanto repouso o arco perto do cavalete. Lanço-Te uma rápida mirada. Sorris. Sublime nessa cruz. Sorrio também. O arco toma a iniciativa e lança-se na música. As pessoas lançam-me olhares furtivos, surpreendidos pelo violino, admirados com a brusca iniciativa do arco e com os dedos que vão acertando com as notas. Não ligo. Vou respirando a resina que as cerdas do arco vão libertando na sua corrida. Aos poucos, todo o espaço se habitua à tua melodia e Tu entusiasmas-Te. A certo ponto já nem sei quem toca... eu ou Tu? A melodia pareceu encaixar com o momento de cada um. Eu desligo-me de tudo o resto, do violino, e rezo também, enquanto Tu continuas, sorrindo, a fazer o violino cantar. Também a mim me embalas, Senhor, nessa cantiga. E tocas tão bem! Atravessaste o espaço erguido pelas mãos de alguém e repousaste no altar. Indiscritível esse momento. Anuncias um ritardando subtil, desenhado pelo abrandar da corrida do arco, e, com duas longas notas, terminas a melodia. Levo o violino até debaixo do meu braço (movimento que o arco acompanha) e ajoelho-me perante Ti. Parece que ainda sorris mais, de sobrancelhas ainda mais arqueadas, maçãs do rosto mais definidas, lábio mais distendido, pregado nessa cruz. Acompanho-Te nessa alegria e digo ao meu violino que nessa noite temos de conversar. Ele sorri, feliz e arrogante. Eu sorrio, feliz e interrogante. Tu sorris, feliz e fascinante.