terça-feira, março 28, 2006

Dura praxis, sed praxis II

Acordei hoje bem-disposta, com vontade de agarrar o mundo todo com um abraço, com vontade de ser útil, de produzir, de criar, de inventar… Não invejei ninguém em especial, também não me adorei. Simplesmente sacudi as angústias quando me levantei e rumei à minha faculdade (até já a chamo minha… isto está grave!).

Passei a porta férrea descontraidamente, mas mal a deixo, ouço atrás de mim uma voz: “Caloirinha!” Sem qualquer símbolo académico a não ser a pasta, esta minha “doutora”, que várias vezes já me fez berrar os meus pulmões, não me é mais do que uma simples mortal. Não fosse a pasta, poderia até ser uma miúda do secundário. Simpatizo com o tom dela: “Vais às aulas? Vocês hoje vão sofrer muito… Vai haver uma mega praxe!” Oh, tá bem. Já fugi vezes de mais antes, hoje quero lá saber. Vou às aulas! E um sorriso confiante nasceu-me nos lábios.

Tive uma aula, que não acrescentou grande coisa à minha pessoa, sem grupos de praxe à vista. E lá ia eu toda contentinha para a segunda e última aula – “Que bom, depois disto tenho o dia todo por minha conta, maravilha!”. Pois sim. Saio da sala e lá estão as hienas juntinhas à minha espera. Finjo que não é nada comigo (que coisa mais estúpida! Mais valia ter sido natural…) e, obviamente: “É caloira? Então está mobilizada. Encoste-se à parede!”. Ó vida! Ó tempo! Quando é que isto irá acabar?!

Peripécias, muitas, e eu encostada a uma canto a ver “a banda passar”. Mas sem rancor. Diverti-me imenso a observar de perto estas supra-personalidades dos comuns mortais que trajam. É lindo ver esta estranha segurança que um traje dá a pessoas que se cheira à distância serem inseguras.

Picardia com os de medicina, as cantigas do costume, mas com um espírito saudável de respeito que ainda não tinha encontrado. Não houve cenas obscenas, actos humilhantes. Umas cançõezinhas, uns desfiles inocentes, pequenas coisas sem quintos significados.

Estranho como pode ter sido esta a minha reconciliação com as tradições praxísticas que tanto e tão rancorosamente condenei antes. Continuo a não perceber porquê nesta altura do ano, porquê impedir os caloiros de ir às aulas, porquê tanto estardalhaço. E continuo sem perceber as coisas vergonhosas que continuam a acontecer. Mas já não me revolto. Para quê? Hoje vi as pessoas para lá do traje. Hoje vi pessoas com ideias engraçadas e um espírito bonito que, houvesse espaços e vontade para isso, poderiam ser muito bem usadas. Para lá do traje, vi pessoas que nunca tinha visto antes. Talvez tenha sido sempre praxada por ignorantes e frustrados, mas hoje fui bem praxada e, tenho de engolir o meu orgulho artístico e admiti-lo, não desgostei. Ou pelo menos não odiei. É claro que há mil outras coisas com que gostaria de ocupar o meu tempo, mas desta vez não me senti esmagada por uma fatalidade revoltante, nem experimentei aquela sensação de opressão e impotência que tanto incomoda. Para lá do traje, imaginei pessoas interessantes e com dons diferentes: um dom de entreter, um dom de conversar, um dom de ouvir, um dom de cantar… Talvez veja rosas onde elas não nascem, mas hoje descobri um lado que nunca tinha visto. Pessoas com capacidades e aparentemente inteligentes (claro, apenas algumas no meio de muitas – de muitas banais, até medíocres, parvinhas e quase a tocar no ordinário) que poderiam fazer tanto bem à comunidade.

Talvez o problema seja da educação, ou então da sociedade. Educa-se para a mediocridade, para o nivelamento por baixo e corta-se pela raiz o desejo de se ser bom, útil, produtivo – de se ser prestável. Há muita gente que precisa de ajuda, muita gente que precisa de um bom abanão de boa disposição num quotidiano todo igual e sem esperança. E eu imaginei gente como a que vi hoje – em lares de terceira idade, em orfanatos, em associações, em salas de hospitais – a prestar trabalho útil para a comunidade e soube-me bem. E fez-me sentir incomodada comigo mesma porque afinal sou igual a tantas outras pessoas, acomodada à minha sorte e esquecida de que ainda há tanto para fazer no mundo…

sexta-feira, março 17, 2006

"Poesia" de Sophia

Quem descobre Sophia torna-se mais sabedor. Quem descobre Sophia encontra a beleza das palavras, da vida, do amor e dos sentidos em linhas tão simples, tão leves mas tão complicadas! Este poema, esta "Poesia", é belo e é intenso e é lindo. E eu leio-o e penso que afinal todos somos poetas, mesmo aquele que não tem o mais pequeno pingo de poesia a correr-lhe nas veias. Existes e estás aqui? És poeta.

Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.

sexta-feira, março 10, 2006

Dura praxis sed praxis

Acordei hoje cedo, tensa, irritada, sem vontade nenhuma de ir às aulas. Invejei gulosamente todos aqueles que estão de bem com a consciência quando esquecem que estudam nos interstícios das frequências e desejei, como tantas vezes, não ter esta minha aguda consciência de tudo. Quis ficar a dormir, na verdade dormitei mais uma hora, mas lá decidi deixar o quentinho e enfrentar a chuva. Tudo pela minha consciência.

Cheguei à faculdade, caderninho de caloira na mão, preparada para entrar na História do Direito Português. Mas mal saio do autocarro, encontro duas amigas irritadíssimas porque os frustrados do segundo ano lá estavam, arrogantemente trajadinhos à espera de ver chegar os caloirinhos para despejar neles as suas frustrações indevidas.

Parei e fiquei com elas. Vamos? Aceitamos o risco de sermos mobilizadas, tentamos mostrar que queremos mesmo ir às aulas, ou damos meia volta com o rabo entre as pernas e deixamos passar? A Cabra apontava já para as 10h28m, implacavelmente. Não sei. Não me apetece encostar o corpo à parede e gritar “sou um pega-monstros!” nem cantar músicas brejeiras de mais para as 10h30m da manhã, que entretanto a Cabra já anunciara com a sua badalada animal.

Para meu desespero, demos meia volta e fomos desperdiçar tempo com um café da manhã mal amanhado. Não é só de quatro que há humilhação – a impotência psicológica é bem mais funda do que a subordinação física. E faltar às aulas por medo é uma terrível forma de humilhação.

Vim o caminho todo a pensar nas ironias da vida e nas tensões em latência que cada um guarda em si. Secretamente, desejei ter escolhido ir às aulas, desejei ter sido suficientemente segura de mim para escolher o meu caminho sem interferência de um bando de putos que, com mais um ano, tem todas as minhas cadeiras. Se quero faltar às aulas quero ser eu a escolher faltar às aulas. Mas não. E faltei na mesma.

Não resisti a ir ler umas coisinhas sobre a praxe e não pude deixar de rir com tanta ignorância. A começar pelo lema “Dura praxis sed praxis”. Como pôde uma palavra tão bonita como “praxis”, a prática, a acção do homem, tornar-se numa coisa tão rasteirinha como um conjunto de tradições que cumpre transmitir a todo o custo? Como se pôde adoptar como lema uma adaptação do tão desajustado mote “dura lex sed lex”, típico do positivismo legalista que não faz absolutamente nenhum sentido? Tal como o direito não se reduz à lei, também a vida universitária não se reduz à praxe.

Acredito que a praxe faz sentido nas primeiras semanas de vida universitária, como forma ritualizada de iniciar uma nova etapa, como choque inicial de uma nova fase da vida que é, independentemente das condições de cada um, mudança. E passa por aceitar a diversidade e enormidade de um mundo que sabemos não conhecer e perante o qual somos em muitas situações inúteis e impotentes. E a praxe mostra isso. Mas vida universitária é sobretudo um processo de crescimento, que passa por aceitar o papel interventivo da nossa pessoa, que lentamente vai deixando a impotência de lado e abre-se a novas formas de intervenção e de vivências. E é a partir desta consciencialização que a praxe como joguinhos de poder deixa de ter sentido.

Ao contrario do que se possa pensar a praxe não é para fazer mal ao caloiro ou gozar com ele, mas sim a praxe serve para ajudar o caloiro ou recém-chegado a Universidade a integrar-se no ambiente universitário, a criar amizades e a desenvolver laços de sólida camaradagem. É através da Praxe que o estudante desenvolve um profundo amor e orgulho pela instituição que frequenta, a sua segunda casa. […] A Praxe revestiu-se historicamente de diversas formas, sofreu inúmeras transformações e chegou mesmo a estar proibida e suspensa. Após o 25 de Abril de 1974 a Universidade deixou se ver vista como um lugar sagrado, destinado a muito poucos, e assim com a democratização da Universidade, voltasse a implantar a grande tradição da Praxe Académica.” Não consigo deixar de traçar um esgar irónico ao ler isto que alguém escreveu numa página da net sobre a praxe, alguém que é membro da COPA da Universidade Lusófona. O texto vem com a seguinte observação: OBS: Este texto foi-nos gentilmente enviado por e-mail para publicação pela Ass. Escadote Cultural [escadote_cultural@hotmail.com]. Embora não seja especificamente sobre a Universidade de Coimbra, achamos deveras de interesse. Acho deveras interessante a qualidade de todo este português, desde o “voltasse a implantar” (tradução: volta-se a implantar) até ao encadeamento lógico de ideias. Mas ei, eu sou uma caloira recém-chegada, eu não sei nada! E preciso que me embebedem e que me obriguem a dançar o cabaré e a dizer que sou a Rita, a puta que mais grita aqui no cabaré, e preciso que me obriguem a pôr de quatro no chão para quem passa por trás ver os nosso rabinhos de caloirinhos ingénuos e preciso que venham os repórteres e nos filmem a fazer estas lindas figuras e preciso que os “doutores” me tratem por você e por caloira e que me berrem e que me perguntem quantos dentes tenho, se sou virgem, de que estrebaria sou… e a vontade que eu tenho é mandá-los todos a um certo sítio, a eles mais aos seus laços de camaradagem e sólidas amizades hierarquizadas. Filhos da puta. Filhos da puta não, que não há puta que os parisse. Apetece é citar Fernando Pessoa no seu mais rude tom, mostrar-lhes a minha erudição de rua, enquanto eles me obrigam a cantar a francesa aos transeuntes que me olham com nojo.

Exagero, talvez, mas fico revoltada com situações como esta. E fico revoltada quando os professores dizem que no segundo semestre quase não têm alunos. Por que será?

Não consigo compreender esta mediocridade arrasante que inunda este nosso país, as nossas instituições, os nossos cidadãos. Não consigo compreender esta contínua tensão entre a lei do mínimo esforço e a dura realidade de que nada se consegue sem esforço e sem trabalho. Não consigo desenredar-me desta teia em que já caí de cultivar uma imagem aparentemente despreocupada e de espírito desocupado de estudo, uma imagem de uma certa suplesse, de um à vontade desenrascado de todos, de todos nós.

O que mais assusta é que esta situação não se passa só na faculdade de direito, significando isto que o futuro de Portugal é um futuro de juristas medíocres, entalados na “dura lex” que não ousam sequer questionar, um futuro de maus advogados, de maus juízes, de maus notários, de uma cambada de gente ineficiente, ignorante e cega. E também de maus médicos, professores, físicos, historiadores, matemáticos, políticos, engenheiros, etc, que se auto intitulam “Doutores”. É o país que temos e o bom ensino que ele tem!