Quero matar esta sensibilidade que me mata Quero ser insensivelmente insensível, Como uma andorinha a quem arrancaram o coração. Não quero sentir absolutamente nada E não posso sentir absolutamente nada Sem que logo racionalize todo o sentir. Talvez não sinta completamente Porque sempre que sinto penso que sinto E ao pensar que sinto deixo de sentir verdadeiramente. (Quero deitar-me à sombra de um carvalho Robusto, lindo, grande e majestoso E diluir-me na sombra que ele me dá Até não se saber onde começo eu E acaba a sua sombra.) Quero matar esta racionalidade que me mata Quero ser irracionalmente irracional, Como uma coruja a quem tiraram a razão. Não quero pensar absolutamente nada E não posso pensar absolutamente nada Sem que logo me enrodilhe nos pensamentos. Mas eu penso que não quero pensar nada E ao pensar que não quero pensar, penso: Pensar que não se quer pensar é pensar verdadeiramente. (Quero encostar-me a um canto e salivar de boca aberta Sem que a minha racionalidade reprima Toda a estupidez que é salivar a um canto Como uma besta estúpida Que não faz mais do que salivar.)
sábado, dezembro 30, 2006
Poema assassino
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3 comentários:
gosto e identifico-me.
beijinho
Raquel
se pudessemos nao pensar e nao sentir...
bjnh, maria
"Poema assassino": poema fantástico.
Pareceu-me um estranho híbrido de Pessoa com Álvaro de Campos - e a relação entre os dois já era estranha. Para além de toda a brincadeira barroca com as repetições e paradoxos e jogos de conceitos, há, na realidade, uma coerente reflexão (raios!, reflexão!, pensamento!, pensar!) sobre os malefícios do pensamento. E penso que ninguém discorda delas, nem que seja por preguiça de pensar para não ter de pensar se concorda com pensar ser pior que não pensar.
É, essencialmente, um poema muito forte, e deve-o a umas duas ou três comparações que são violentíssimas e, por isso mesmo, excepcionais: a "andorinha a quem arrancaram o coração" ou a "coruja a quem tiraram a razão" (este verso significou muito para mim por razões particulares que demoraria aqui a revelar).
Porém, ainda que todo o poema fosse mau - e na realidade todo o poema é fantástico, a última estrofe seria o suficiente para o redimir. É absolutamente formidável, de um visualismo aberrante, d eum primitivismo selvagem: uma cuspidela bárbara na beleza lírica e, por isso, corajosa, audaciosa, marcante. Muito marcante. Mesmo muito marcante (tenho a imagem às cambalhotas dentro de mim).
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