quarta-feira, dezembro 20, 2006

O Piano Negro

Já vi muitas pessoas passar por aqui. Tantas que já lhes perdi a conta às caras, aos feitios, aos modos de beber. Sozinhas, aos pares, em grandes grupos, apenas por umas horas ou durante noites inteiras. Quantos ilustres desconhecidos não se sentaram já nas minhas mesas, quantos não se esticaram ao balcão com copos vazios cheios de mágoas? Já vi longas conversas, grandes bebedeiras, imensos choros cruzados e zangas para uma vida inteira. Já aturei parvos e parvas, já expulsei insolentes e cobardes, já ofereci bebidas e também cobrei bebidas não servidas. Já lamentei muitas cenas, já desejei outra vida, já desesperei horas perdidas na decadência… Sempre bebi para esquecer tudo isso. Agora conformo-me com o meu lugar no mundo, bebo uns copos de vez em quando. E o mais incrível é que continuo deste lado do balcão.
Deixei já de reparar nas pessoas, parecem-me todas iguais. Vêm cá todas pelas mesmas razões. Vivem fechadas em caixinhas que construíram para si, caixinhas pequenas, quadradas e obtusas em que não se podem mexer, onde não é permitido sentir, abraçar, beijar, ser impulsivo. Vêem cá queimar o estômago para sair das caixas onde se deixaram afundar. Querem liberdade para fazer coisas de que não se lembram quando acordam e querem fazê-las sem assumir a responsabilidade. E então bebem e bebem e bebem até a responsabilidade se evaporar dos seus corpos suados. E eu assisto, estúpido e indiferente. Já não me importa.
Não foi sempre assim. Antes reparava nas pessoas. Observava-as primeiro. A forma de andar, de gesticular, de olhar… tudo na sua presença e postura me dava uma ideia do tipo de pessoa que tinha na minha frente. E assim podia escolher o tipo de bebida de que gostavam, ainda antes de elas pedirem. Se não havia nada que combinasse com a pessoa, logo ali eu criava um cocktail que a deixava maravilhada. Compreendia as pessoas pela maneira de entrar, pela maneira de sentar, pela maneira como falavam comigo.
Há tempos, entrou pela porta uma rapariga. Veio sozinha e sentou-se num canto. Era baixinha, discreta. Não tinha nenhum traço especial mas era estranhamente bonita. Os olhos tinham um qualquer encanto exótico, talvez pela maneira como olhava curiosamente para tudo. Primeiro não pediu nada, depois lá bebeu um copo de Porto. Levei-lho eu próprio à mesa, com um guardanapo e tudo.
Fiquei intrigado pela sua presença; pela primeira vez não conseguia perceber alguém só pelos gestos – e os dela eram tão graciosos, tão belos! – pela maneira de andar e se sentar. “Talvez esteja à espera de alguém.” Mas ela nunca olhava para a porta e o pulso estava nu de relógio. Ficava simplesmente ali, a beber golinhos pequeninos de Porto e a olhar fixamente o vazio. A solidão emanava do seu corpo e despertava em mim uma profunda tristeza.
Começou a vir cada vez mais frequentemente. Sempre sozinha, sempre o copo de Porto. Nunca dizia nada, nunca falava com ninguém. Uma vez tentei meter conversa com ela: “Menina, olhe que a tristeza é como um cancro na alma!” Ela riu-se timidamente mas não abriu a boca. Eu sorri e voltei ao meu lugar. Nunca mais lhe disse nada.
Assim foi durante uns tempos. A rapariga vinha todos os dias, ficava no seu canto isolada. Ela vinha e bebia um copo, fixava o infinito e ninguém reparava nela se não eu. Mas ela continuava a vir e a beber e eu ficava cada vez mais intrigado com esta estranha presença.
Certo dia, ela não apareceu. Veio outro dia e outro e ela nunca mais apareceu. Ninguém reparou, ninguém deu pela falta dela. A não ser eu. Fiquei incomodado durante vários dias. A minha mulher estranhou-me em casa, achou-me esquisito. “Ando cansado, ando cansado”. A minha mulher nunca me percebeu muito bem.
Já passaram cinco anos desde que veio cá a rapariga. Nunca mais voltou desde aquele último dia. Desde esse dia que penso nela todos os dias. Não consigo esquecer aqueles raios de solidão que me impressionavam até ao mais fundo de mim. Pergunto-me o que lhe terá acontecido e não consigo deixar de pressentir algo de trágico. Afasto de mim este pensamento e quanto mais o afasto mais ele parece afirmar-se em mim como uma evidência. Esforço-me por acreditar que deixou de vir porque conseguiu sair da caixinha. Esforço-me por acreditar… embora saiba que não. Há algo de trágico em todos os Homens. Há também algo de cómico. Nalguns, o cómico é mais evidente. Noutros, o trágico leva a melhor.

1 comentário:

Anónimo disse...

gostei muito.
há imagens que nos ficam na cabeça...

cristina cartaxo