Estava frio. O nariz já se queixava, desaparecendo do campo dos sentidos. Olhava as manchas de vapor que a minha respiração desenhava no ar com o frio, que eram levemente arrastadas pelo vento. Formas sem forma. O meu olhar focou-se, por um breve instante, para lá da minha mancha de vapor. Olhavas para mim. Com os teus olhos azuis, enquadrados em vincos do tempo, em rugas bem profundas, que engelhavam a pele que vestias por cima dos ossos. Foquei de novo o cinzento. Tentei abstrair-me. Aproximaste-te. Tiraste a carteira do bolso e, interrompendo e desfazendo o volume de vapor que se formava naquele momento, mostraste-me o teu cartão de identificação. Foram dois segundos... nem te vi o nome. Vi o que querias. O número 613 em preto carregado. "O 613 sou eu... lá em Lisboa." Sorri. Percebi-te. Nesta noite, precisavas de conversar. Relembrar a tua vida, que receavas começar a perder aos poucos, pelos recantos da rua onde passavas as noites. E eu era a tua ouvinte. Aos poucos, evitando prender demasiado os teus nos meus olhos, foste contando. Já tinhas sido alcoólico. Foi isso que te destruiu a família. A vida. Lamentavas aquele amigo das Químicas que era um bêbedo. Que só arranjava problemas. E que quando finalmente conseguia uns trocos, diluia-os num copo sujo. Tu não! Não eras assim! Tu não bebes! Não bebes! Repetiste-mo vezes sem conta. Falaste de Lisboa. Mas não! Não eras de lá! Eras da terra do Pinto da Costa. Que, disseste tu, às quartas te ia dar comida. A ti e aos teus amigos! Ia ele próprio! De avental! De Lisboa não gostavas. Era perigoso. Demasiado perigoso. Os viciados (quer no alcool quer noutras drogas) não te deixavam dormir sossegado no teu cartão e tentavam até roubar o teu cobertor. Ali, em Coimbra, era bom. "Cidade em que há paz, tá a perceber?". Fazias os teus trabalhitos. Limpar umas entradas de casa, uns galinheiros, guardar uns troquitos e ir aceitando a comida que te davam. Falavas das raparigas que te acordavam para te trazer o jantar e de como tu, meio ensonado e desconfiado, torcias o nariz ao embrulho. "Que eu não aceito comida de ninguém.... (riste-te)... sabe porquê? Porque, de vez em quando, já tenho a abrriga cheia!(riste-te com gosto. Eu ri-me também)". às vezes dás um salto a Lisboa e outras vezes ao Porto. Tens no bolso nove números de telemóvel de camionistas que te levam à boleia. Silêncio. Lembras-te da tua mulher. Que fugiu com um sacana e os 2700 contos que tinhas no banco. Se a tivesses apanhado, ainda tinhas feito uma asneira. Dizias, meio triste. E o teu filho. E a tua nora. E a tua neta. "Até gostava de ver a miuda". Aí arrisquei... " Então e por que não? Vá vê-la. Até sabe onde ela mora!". Não quero que tenham pena de mim. Estou bem. O problema dos homeless (como dizias, tentando testar o meu inglês) é que se habituam. Depois não querem sair da rua. Já me ofereceram casa. Que até tinha televisão. Mas não. Na rua és livre. És só. És tu. Contaste-me mais uns episódios. Meninos ricos na rua. pfff! rias-te com algum desdém. Navalhadas que levaram amigos teus para o hospital. Até a história daquele pobre que não tinha uma perna e andava com duas moletas. Em lisboa, roubaram-lhe uma. Sacanas! É coisa que se faça? ciciavas do fundo da alma. Disseste-me onde vivias agora. Com casa-de-banho privativa e tudo! ri-me com a tua boa disposição. Virei-me por um instante para prestar atenção a alguém que a pedia e quando me voltei para ti, tinhas ido embora. Nem fiquei a saber o teu nome. Talvez um dia destes te visite no teu cartão. Te conte uma história bonita de um homem que se perdeu no alcoól e se achou na rua. Que adormeceu num cartão mas acordou na vontade de querer ir trabalhar e refazer a vida. No fundo, não és independente. Nem livre. Nenhum de nós o é, verdadeiramente. Nem tu. És só. Isso sim. És só. A rua acolhe-te porque é só também. A cidade acolhe-te porque ainda não há muitos como tu. A sociedade rejeita-te porque talvez ela precise também que lhe interrompas as suas manchas de vapor. Até sempre.
Para o caso de duvidarem, o 613 é mesmo, agora, meu amigo. : )
Sem comentários:
Enviar um comentário