3º acto da ópera Vénus e Adonis cantada pelos alunos da classe de conjunto de Canto e Drama do Conservatório de música de Coimbra. :)
"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida"
3º acto da ópera Vénus e Adonis cantada pelos alunos da classe de conjunto de Canto e Drama do Conservatório de música de Coimbra. :)
Estava a publicar o último post quando reparei numa evidência: era o número 149. Ou seja, e se a minha lógica não está errada, este é o número 150 (juro!). 150! Como é possível que já tenhamos escrito tanta parvoíce para aqui e, mais incrível, como é possível que até nos tenham lido? Incrível, de facto.
E depois (hoje estou mesmo perspicaz) reparei ainda noutro facto: hoje é dia 27 de Junho, daqui a dois dias este blog faz – incrível! – dois anos! O ano passado gozei bastante com o facto de se celebrar emotivamente o aniversário de um blog. Este ano, contudo, sobretudo porque já me reconheci a doença crónica do lirismo, vou fazê-lo de forma extremamente lamechas. Há que chorar lágrimas de alegria por dois anos disto!
Há dois anos, decidimos criar um blog, por brincadeira, por piada, surgiu assim do meio do nada e nasceu às três pancadas. Começámos meio toscamente, como se começam todas as coisas, sem saber muito bem o que queríamos escrever, o que queríamos partilhar. Também não sabíamos muito bem se este era um espaço de intimidade ou não, se era um espaço para nós e para aqueles que nos são próximos, ou se também para os outros, já que o espaço é público. Talvez ainda não saibamos, ou pelo menos eu não sei, porque não sei, na verdade, quem lê o que aqui está. Gosto de pensar que são mais pessoas do que as que sei que lêem.
Quando criámos o blog não sabíamos bem o que era, ou melhor, até onde se podia esticar. Apercebo-me agora de que os blogs têm um tempo de vida e já sei da blogosfera o suficiente para perceber que, mais cedo ou mais tarde, morrem – como todas as coisas. (Hum… supostamente isto é uma celebração de aniversário e não uma efeméride, mas pronto…) A blogosfera é um espaço de mistério, de virtualidade. Conheço blogs onde há uma exposição quase visceral do eu, outros que se distanciam propositadamente de si e se focam em aspectos específicos do mundo, outros ainda que são quase diários dos seus autores. Ao fim de dois anos, ainda não percebi bem o que é afinal esta (con)vivência. Talvez isso não seja mau, talvez não tenha de se definir.
Ao fim de dois anos, é giro olhar para os primeiros posts e ver o quanto eles mudaram, evoluíram. (Vá, o quanto nós evoluímos.) Mas sobretudo, é bom ver os comentários, é bom ler o que diz quem aqui passa e deixa uma marca da sua passagem. No fundo é isso a convivência, mais do que a partilha, a troca.
Por isso, parabéns a nós, há festa para quem nos lê, para quem comenta e para quem já por aqui passou de alguma maneira. Obrigada!
Há nas paredes qualquer coisa impalpável, incorpórea, entranhada nas pedras castanhas que a compõem. Lembra-me alguma coisa, aquela pedra lascada – Flinstones? –, embutida no branco sujo como manchas escuras numa vaca. Salpicam-na pequenos quadros, caricaturas sugestivas de gente que por ali passou e assim ficou, uma tabuleta que contém a “Escala de la borrachera”, uma fotografia da cidade ao fundo. A luz que ilumina a sala é fraca, brota de pequenos candeeiros amarelados e cai sobre nós numa auréola mágica. As mesas são de taberna, robustas e quadradas, de uma madeira escura e rija, ligam-se à parede como se não acabassem ali e se prolongassem pelas manchas de vaca. Estão cheias de gente, é claro, gente cheia e contente, brandindo na mão a amarelinha ou o Porto. Acende-se a chama do chouriço assado, pede-se mais um fino e os rostos abrem-se de felicidade, daquela felicidade que nasce do estômago aconchegado e da substância impalpável entranhada nas paredes. Do contacto com os outros, da intimidade que não tem de se dizer porque está lá, da tranquilidade.
O ambiente é ameno, sereno, vivo e as vozes das conversas várias compõem o ruído de fundo. O dono é um homem de meia-idade de voz grave e distinta que se move com gosto pelas mesas, metendo conversa pelo meio dos pedidos. E logo convence um amigo de longa data – ou assim parece - a tirar a viola do saco e fazer ecoar nas paredes o que finalmente percebo estar impalpavelmente entranhado nelas: todas as vozes que ali cantaram, todas as vozes que, ecoando, soltaram emoções às gentes que ali estiveram. O afinar da viola, os primeiros acordes e Zeca Afonso renasce para quem ali estava. E Sérgio Godinho. E a “Balada do Quinto Ano Jurídico”. E fados, “Os Putos”, e outros, e várias vozes e várias gentes e as paredes do aconchego de ali estar simplesmente, ouvir e cantar também, gostar.
Diligência. Tudo ali é diligentemente tratado, personalizado (excepto os escusados “shius” que se soltam volta e meia, como se falar fosse uma arte menor comparada com a palavra cantada), o círculo de habitués toma conta de nós e sentimo-nos ali de longa data, ainda que sejamos novos, ainda que não cheguem aos dedos das mãos as vezes que lá estivemos. É como se sempre tivéssemos estado, como se sempre soubéssemos lá voltar. E no fim, quando saímos, não é só o cálice de Porto que nos enche a alma e a voz, há algo em nós daquelas paredes e – pressinto – algo de nós ficou também nelas, uma espécie de promessa tácita, selada no silêncio das vozes, de lá voltar – muitas vezes.
"É um facto que sob diversos aspectos muito particulares a nossa lei civil, e não só, protege aspectos específicos do entendimento humano." Nota de rodapé: "Assim, pelo artigo 203º do Código Penal, é punida a cópula mediante fraude. Nomeadamente comete tal crime quem, introduzindo-se na cama de mulher casada, fazendo-se passar pelo marido e aproveitando a sonolência, consegue com ela manter cópula".
Eram cinco ou seis, perguntaram ao condutor se este era o 34, picaram as senhas e entraram no autocarro aos apalpões. Os poucos passageiros de fim de tarde, rotineiros habitantes dos transportes públicos, ficaram suspensos a observar a cena. Entra um grupo de cegos e nenhum de nós consegue ver para lá da diferença. Um rapaz levantou-se desajeitadamente num dos lugares da frente, tocou no braço da rapariga sorridente de olho irrequieto, mas ela, recolhendo a vara com a mão, encontrou caminho até ao espaço vazio a meio do autocarro e lá ficou.
Foi então que entrou o casal, não sei que idade teriam mas não mais de trinta e poucos, e o carrinho de bebé. E os passageiros do autocarro pensaram todos o mesmo, ou pelo menos eu pensei e reparei também no olhar absorto de outra rapariga fixo no sorriso da criança. Como conseguem? A mãe estava encostada ao carrinho e, sem olhar para baixo, fazia carinhos ao seu lindo bebé. Ao lado, o pai agarrava-se às barras azuis do autocarro, abraçado com força para não cair. O anelar de ambos brilhava de aliança. Não trocaram grandes palavras, deixaram-se ir juntos e em silêncio. Também para eles o autocarro é um espaço de cansaço passageiro.
Só quase a chegar ao Bairro perguntaram ao condutor se era na paragem seguinte. Como sabiam? Contaram as paragens? Como será a percepção do espaço de um cego?
Eu enrolada nos meus pensamentos e o grupo abriu as típicas varas brancas como guarda-chuvas. Saíram com pequenos empurrões e a mãe ficou para último, com o carrinho. O pai voltou a dobrar a cana de apoio e, num gesto firme, pegou no carrinho com a mãe. Só lá fora, da minha janela de preconceitos, consegui ver finalmente a carinha amorosa da bebé. Cheia de vida e de espanto, os seus olhos brilhantes perscrutavam o mundo, os pais, o seu mundo. E toda ela era curiosidade.
Aproveita o dia. Entristece-me perceber que o carpe diem está a perder a beleza. Não por ser quase catalogado como frase feita. Acho que não corre esse risco. O risco, corre-o na interpretação que dele se faz. Que se faz de tão simples expressão. Carpe diem = vive tudo hoje. Carpe diem = experimenta tudo como se não houvesse amanhã. Carpe diem = a vida é curta e tens de aproveitar o imediato. Carpe diem = para quê fazer planos. Carpe diem = absorve o já, o imediato, o instantâneo, e não penses sequer no reflexo que o que fazes agora pode ter no futuro. Que sofreguidão é esta, pergunto eu? Que pressa é esta, a de querer experimentar tudo já porque pode não haver depois ou porque no depois já não há espaço para experiências? Nem há tempo para mastigar. Apreciar os sabores. Os contrastes agri-doces que a nossa lingua explora. Engole! Engole tudo já! Se depois quiseres mastigar, olha! Ou consegues com algum esforço trazer tudo de novo à boca e reflectires num bolo alimentar ou paciência e segue em frente.
Carpe diem é mais; penso eu. É muito mais. É um não tenhas medo de assumires o dia de hoje. Aproveita-o e assimila-o. Ele faz de ti o que tu és e podes ser. É muito mais. É um aproveita o Pouco, o Pequeno e o Possível, e disfruta da sua beleza e das transformações que em ti ocorrem, frutos dos 3"Pês". É muito mais. É um vive um dia de cada vez mas com os olhos em Deus (ou na tua alma, para quem Nele não crê) que te atira o olhar para bem mais longe do que o teu dia, do que o agora e do que os teus pés.
Aproveita o dia porque ele é como que mais uma conta no colar da tua história, que podes depois acariciar com as saudades de um dia bem aproveitado que ficam guardadas na memória, compondo uma conta perfeita; conta à qual se juntarão muitas mais, todas fruto de um carpe diem com futuro, paciente, belo.
Vivemos no Ocidente imbuído de Hollywood, de beijos apaixonados e cenas escaldantes e simples e fáceis e maravilhosas. De Hollywood consumimos comédias românticas, tragédias românticas, aventuras românticas e thrillers que invariavelmente começam com uma história de amor, sendo raro o filme em que o papel principal cabe à amizade. Celebra-se muito mais o amor erótico do que qualquer outro e a amizade, em vez de celebrada, é silenciada. Sexualizámos todo o amor como se não existisse mais nada e andamos desesperados com a ideia da solidão amorosa, como se o facto de estarmos sozinhos fizesse de nós um farrapo, um falhanço, pessoas destituídas dessa maravilhosa capacidade humana de amar.
Os amigos têm sido relegados para o pano de fundo, para os bastidores da existência, e o palco ficou reservado para a complexa e exigente encenação romântica. Os amigos são injustamente tidos como aqueles que nos confortam nos bastidores do amor sexual, secam as nossas lágrimas despeitadas e maquilham-nos e penteiam-nos e perfumam-nos para repetidas, sucessivas e novas encenações amorosas. E assim se reduz a amizade a um papel fácil de consolo.
Na amizade, como no amor, não há fácil. A amizade é tão exigente e intensa como uma relação amorosa, tão profunda e reconfortante e tão igualmente necessária. “A amizade está para o amor como a chuva dos Invernos quotidianos está para o vendaval histórico” (Inês Pedrosa). E se é verdade que esses vendavais, esses temporais loucos e maravilhosos de amor sexual são das mais intensas e mágicas experiências humanas, também é verdade que quando acabam ficamos farrapos, cacos, pedaços soltos e confusos de dois seres que se fundiram e depois se separaram. O tempo passa e na pele fica só a sombra do desejo: a pele esquece as ânsias tão intensamente sentidas e invariavelmente desperta para outros corpos – mas o coração não esquece, a alma nunca esquece de como foi amar assim tão loucamente.
A nossa sociedade assassinou a amizade e a sexualidade simultaneamente. Erguemos nós e preconceitos em relação a ambas e mobilizámos culpabilizações em massa que nos impedem de vivê-las livremente. Reduzimos o amor ao sexual, reduzimos o prazer ao sexual e todas as sensações humanas, todas as outras formas de amar, ficaram fora deste esquema das coisas, como bolas coloridas que não conseguimos fazer passar por orifícios quadrados. Somos como crianças a descobrir as formas num brinquedo novo e insistimos, insistimos, insistimos em fazer atravessar um cubo pelo espaço de um triângulo. E ficamos sempre frustrados quando percebemos que não conseguimos.
A amizade é, na verdade, esse “lento e constante amor” que nos acompanha na rotina dos dias que passam. Mais do que acompanha, é a amizade que nos motiva, que nos aquece, que nos preenche e enriquece. Com um verdadeiro amigo, somos impelidos a crescer, a expandir o nosso ser de maneira a que ambos nos tornemos maiores, melhores, dois seres humanos mais completos e generosos. A um amigo começamos por não tolerar um defeito – ao contrário de um amante, em que o defeito começa por ser adorável e só depois, quando passa a paixão, se torna insuportável – queremos poli-lo, melhorá-lo e torná-lo menos agreste, num processo recíproco em que cada um deseja melhorar o outro. Por isso, também com os amigos há paixão, intensidade, conflito e desentendimento, também há sofrimento e lágrimas e momentos de angústia. Simplesmente, “as amizades são mais trabalhadas pela razão” (Inês Pedrosa). A um amigo mostramos o melhor e o pior de nós numa partilha absoluta e generosa e rimos que nem loucos e fazemos projectos malucos e zangamo-nos e desabafamos e sofremos em conjunto as misérias de um e de outro, assim como ficamos felizes com os sucessos e alegrias de um e de outro. Os amigos afastam de nós a solidão, trazem a música e fazem a festa. Os amigos são a festa. Os amigos são a festa constante e prolongada que resiste às oscilações do desejo e do sentimento típicas dos amantes.
Os amigos são a festa e o que de mais belo há nessa festa é o respeito, a aceitação, o amor genuíno. Talvez fossemos menos amargos se se cultivasse mais a amizade como experiência profunda de ligação aos outros, de relação interpessoal. Talvez fossemos mais felizes se houvesse mais filmes, livros, peças de teatro, mais monumentos a essa forma de amor tão generosa quão gratificante, se se celebrasse mais este “lento e constante amor” que resiste aos vendavais amorosos e às frustrações do dia a dia e nos enche ora de um sol quentinho e luminoso ora nos acompanha à lareira nos dias frios dos Invernos chuvosos do quotidiano.
A todos os meus amigos, obrigada por vocês, a vocês e a nós! Tchim tchim! :-)
Nota: o título foi “roubado” a um texto magnífico de Inês Pedrosa sobre o tema.