Há nas paredes qualquer coisa impalpável, incorpórea, entranhada nas pedras castanhas que a compõem. Lembra-me alguma coisa, aquela pedra lascada – Flinstones? –, embutida no branco sujo como manchas escuras numa vaca. Salpicam-na pequenos quadros, caricaturas sugestivas de gente que por ali passou e assim ficou, uma tabuleta que contém a “Escala de la borrachera”, uma fotografia da cidade ao fundo. A luz que ilumina a sala é fraca, brota de pequenos candeeiros amarelados e cai sobre nós numa auréola mágica. As mesas são de taberna, robustas e quadradas, de uma madeira escura e rija, ligam-se à parede como se não acabassem ali e se prolongassem pelas manchas de vaca. Estão cheias de gente, é claro, gente cheia e contente, brandindo na mão a amarelinha ou o Porto. Acende-se a chama do chouriço assado, pede-se mais um fino e os rostos abrem-se de felicidade, daquela felicidade que nasce do estômago aconchegado e da substância impalpável entranhada nas paredes. Do contacto com os outros, da intimidade que não tem de se dizer porque está lá, da tranquilidade.
O ambiente é ameno, sereno, vivo e as vozes das conversas várias compõem o ruído de fundo. O dono é um homem de meia-idade de voz grave e distinta que se move com gosto pelas mesas, metendo conversa pelo meio dos pedidos. E logo convence um amigo de longa data – ou assim parece - a tirar a viola do saco e fazer ecoar nas paredes o que finalmente percebo estar impalpavelmente entranhado nelas: todas as vozes que ali cantaram, todas as vozes que, ecoando, soltaram emoções às gentes que ali estiveram. O afinar da viola, os primeiros acordes e Zeca Afonso renasce para quem ali estava. E Sérgio Godinho. E a “Balada do Quinto Ano Jurídico”. E fados, “Os Putos”, e outros, e várias vozes e várias gentes e as paredes do aconchego de ali estar simplesmente, ouvir e cantar também, gostar.
Diligência. Tudo ali é diligentemente tratado, personalizado (excepto os escusados “shius” que se soltam volta e meia, como se falar fosse uma arte menor comparada com a palavra cantada), o círculo de habitués toma conta de nós e sentimo-nos ali de longa data, ainda que sejamos novos, ainda que não cheguem aos dedos das mãos as vezes que lá estivemos. É como se sempre tivéssemos estado, como se sempre soubéssemos lá voltar. E no fim, quando saímos, não é só o cálice de Porto que nos enche a alma e a voz, há algo em nós daquelas paredes e – pressinto – algo de nós ficou também nelas, uma espécie de promessa tácita, selada no silêncio das vozes, de lá voltar – muitas vezes.
1 comentário:
muitas e muitas ... e muitas vezes =)
maria*
Enviar um comentário