sexta-feira, junho 15, 2007

O essencial...

Eram cinco ou seis, perguntaram ao condutor se este era o 34, picaram as senhas e entraram no autocarro aos apalpões. Os poucos passageiros de fim de tarde, rotineiros habitantes dos transportes públicos, ficaram suspensos a observar a cena. Entra um grupo de cegos e nenhum de nós consegue ver para lá da diferença. Um rapaz levantou-se desajeitadamente num dos lugares da frente, tocou no braço da rapariga sorridente de olho irrequieto, mas ela, recolhendo a vara com a mão, encontrou caminho até ao espaço vazio a meio do autocarro e lá ficou.

Foi então que entrou o casal, não sei que idade teriam mas não mais de trinta e poucos, e o carrinho de bebé. E os passageiros do autocarro pensaram todos o mesmo, ou pelo menos eu pensei e reparei também no olhar absorto de outra rapariga fixo no sorriso da criança. Como conseguem? A mãe estava encostada ao carrinho e, sem olhar para baixo, fazia carinhos ao seu lindo bebé. Ao lado, o pai agarrava-se às barras azuis do autocarro, abraçado com força para não cair. O anelar de ambos brilhava de aliança. Não trocaram grandes palavras, deixaram-se ir juntos e em silêncio. Também para eles o autocarro é um espaço de cansaço passageiro.

Só quase a chegar ao Bairro perguntaram ao condutor se era na paragem seguinte. Como sabiam? Contaram as paragens? Como será a percepção do espaço de um cego?

Eu enrolada nos meus pensamentos e o grupo abriu as típicas varas brancas como guarda-chuvas. Saíram com pequenos empurrões e a mãe ficou para último, com o carrinho. O pai voltou a dobrar a cana de apoio e, num gesto firme, pegou no carrinho com a mãe. Só lá fora, da minha janela de preconceitos, consegui ver finalmente a carinha amorosa da bebé. Cheia de vida e de espanto, os seus olhos brilhantes perscrutavam o mundo, os pais, o seu mundo. E toda ela era curiosidade.

2 comentários:

Príncipe Myshkin disse...

Devo confessar que se me largou um sorriso no fim de ler, um sorriso a embrulhar o espanto. "Omnia uincit amor", de facto. O que mais deve doer a estes pais é nunca poderem ver a bebé: que ela cresça, em compensação, numa beleza insuperável aos olhos dos que a possam observar.

Tive, uma vez, uma experiência semelhante, na rodoviária, não com cegos, mas com surdos-mudos: um pequeno par de namorados despedia-se antes de um deles embarcar no autocarro. Confesso que foi das despedidas entre amantes mais bonitas que já vi. Era o amor puro, porque sem palavras, só gestos. Tal como era verdadeiro o amor do teu casal, porquanto "o amor, é cego".

(PS: "O anelar de ambos brilhava de aliança." - fenomenal retrabalhar da língua! "...o grupo abriu as típicas varas brancas como guarda-chuvas." - esta comparação é deliciosa, simplesmente)

rita disse...

Já tinha saudades dos teus comenntários! :)

Gostava de ter visto essa despedida que contaste. Uma vez também assisti a uma muito bonita, em Faro, também na rodoviária, e eu vinha cheia de coisas boas das férias de Verão e os dois amantes tinham ali o mundo inteiro, mesmo atravessado pela janela que os separava.

Quanto à bebé do carrinho, era lindíssima! Tinha o cabelo louro aos caracóis e os olhos eram incrivelmente expressivos. Foi bonito de se ver.