domingo, junho 10, 2007

Do lento e constante amor

Vivemos no Ocidente imbuído de Hollywood, de beijos apaixonados e cenas escaldantes e simples e fáceis e maravilhosas. De Hollywood consumimos comédias românticas, tragédias românticas, aventuras românticas e thrillers que invariavelmente começam com uma história de amor, sendo raro o filme em que o papel principal cabe à amizade. Celebra-se muito mais o amor erótico do que qualquer outro e a amizade, em vez de celebrada, é silenciada. Sexualizámos todo o amor como se não existisse mais nada e andamos desesperados com a ideia da solidão amorosa, como se o facto de estarmos sozinhos fizesse de nós um farrapo, um falhanço, pessoas destituídas dessa maravilhosa capacidade humana de amar.

Os amigos têm sido relegados para o pano de fundo, para os bastidores da existência, e o palco ficou reservado para a complexa e exigente encenação romântica. Os amigos são injustamente tidos como aqueles que nos confortam nos bastidores do amor sexual, secam as nossas lágrimas despeitadas e maquilham-nos e penteiam-nos e perfumam-nos para repetidas, sucessivas e novas encenações amorosas. E assim se reduz a amizade a um papel fácil de consolo.

Na amizade, como no amor, não há fácil. A amizade é tão exigente e intensa como uma relação amorosa, tão profunda e reconfortante e tão igualmente necessária. “A amizade está para o amor como a chuva dos Invernos quotidianos está para o vendaval histórico” (Inês Pedrosa). E se é verdade que esses vendavais, esses temporais loucos e maravilhosos de amor sexual são das mais intensas e mágicas experiências humanas, também é verdade que quando acabam ficamos farrapos, cacos, pedaços soltos e confusos de dois seres que se fundiram e depois se separaram. O tempo passa e na pele fica só a sombra do desejo: a pele esquece as ânsias tão intensamente sentidas e invariavelmente desperta para outros corpos – mas o coração não esquece, a alma nunca esquece de como foi amar assim tão loucamente.

A nossa sociedade assassinou a amizade e a sexualidade simultaneamente. Erguemos nós e preconceitos em relação a ambas e mobilizámos culpabilizações em massa que nos impedem de vivê-las livremente. Reduzimos o amor ao sexual, reduzimos o prazer ao sexual e todas as sensações humanas, todas as outras formas de amar, ficaram fora deste esquema das coisas, como bolas coloridas que não conseguimos fazer passar por orifícios quadrados. Somos como crianças a descobrir as formas num brinquedo novo e insistimos, insistimos, insistimos em fazer atravessar um cubo pelo espaço de um triângulo. E ficamos sempre frustrados quando percebemos que não conseguimos.

A amizade é, na verdade, esse “lento e constante amor” que nos acompanha na rotina dos dias que passam. Mais do que acompanha, é a amizade que nos motiva, que nos aquece, que nos preenche e enriquece. Com um verdadeiro amigo, somos impelidos a crescer, a expandir o nosso ser de maneira a que ambos nos tornemos maiores, melhores, dois seres humanos mais completos e generosos. A um amigo começamos por não tolerar um defeito – ao contrário de um amante, em que o defeito começa por ser adorável e só depois, quando passa a paixão, se torna insuportável – queremos poli-lo, melhorá-lo e torná-lo menos agreste, num processo recíproco em que cada um deseja melhorar o outro. Por isso, também com os amigos há paixão, intensidade, conflito e desentendimento, também há sofrimento e lágrimas e momentos de angústia. Simplesmente, “as amizades são mais trabalhadas pela razão” (Inês Pedrosa). A um amigo mostramos o melhor e o pior de nós numa partilha absoluta e generosa e rimos que nem loucos e fazemos projectos malucos e zangamo-nos e desabafamos e sofremos em conjunto as misérias de um e de outro, assim como ficamos felizes com os sucessos e alegrias de um e de outro. Os amigos afastam de nós a solidão, trazem a música e fazem a festa. Os amigos são a festa. Os amigos são a festa constante e prolongada que resiste às oscilações do desejo e do sentimento típicas dos amantes.

Os amigos são a festa e o que de mais belo há nessa festa é o respeito, a aceitação, o amor genuíno. Talvez fossemos menos amargos se se cultivasse mais a amizade como experiência profunda de ligação aos outros, de relação interpessoal. Talvez fossemos mais felizes se houvesse mais filmes, livros, peças de teatro, mais monumentos a essa forma de amor tão generosa quão gratificante, se se celebrasse mais este “lento e constante amor” que resiste aos vendavais amorosos e às frustrações do dia a dia e nos enche ora de um sol quentinho e luminoso ora nos acompanha à lareira nos dias frios dos Invernos chuvosos do quotidiano.

A todos os meus amigos, obrigada por vocês, a vocês e a nós! Tchim tchim! :-)

Nota: o título foi “roubado” a um texto magnífico de Inês Pedrosa sobre o tema.

2 comentários:

Anónimo disse...

Tchim tchim para ti, amiga!
E maldito seja o senhor Freud e o seu "tudo é sexo"! :^(
Como antiga vitima da estupideça de massa Ocidental de ver sexo em qualquer coisa, digo-te obrigado para estas palavras cargas do calor simples dum abraço!
Aqui em Padua nao consegui encontrar novamente amigos tao bons como ti, a Raquel e o Rodrigo, e sento toda a SAUDADE possivel duma amizade profunda como a vossa. Os velhos amigos italianos sao perdidos nas suas aldeias, e com o tempo a cidade afasta-me deles. O amor é como sempre fantastico mas nao é suficiente, é verdade.
Preciso de amigos, entao: quando vem para Italia? =D
Um beijao,
até logo!

Ale

rita disse...

Ale!!!
Não pude deixar de sorrir com o que disseste. :) Lembrei-me do Ludger e do nosso curso de formação e imaginei as coisas que ele diria ao Freud...
E sim, viva a amizade! Saudades, sempre... estou a pensar ir a Itália quando me sair o Euromilhões, até lá só me atrevo a põr os pés em Espanha, que é mais pertinho... Quando voltas tu a Portugal? Nós e a caixa preta cá te esperamos, como sempre. :)
Um beijo enorme,
vê se escreves!
:)