Um dia, quando a nuvem escura da primeira frequência começou a pairar sobre as nossas cabeças, tive a infelicidade de perguntar a um amigo: “Pois é, sai até ao fim do primeiro volume, certo?” Fiquei muito corada quando ele me disse: “Rita, não é para te assustar, mas há mais um volume!” Claro. Eu sabia. Nessa altura, do alto da minha ignorância (que estranhamente se mantém…), pensei para com os meus botões: quatrocentas páginas, ok. Nem é muito. Ai, se eu tivesse sabido…
Qual não foi o meu espanto quando descobri, mais ou menos a meio desse segundo volume, umas seis ou sete páginas daquilo que parecia ser um índice. “Que estupidez, pôr o índice a meio do livro! Ai, este Rabin…” Só quando vi melhor, quando olhei para as entrelinhas daqueles títulos e subtítulos e secções e subsecções é que percebi a mais dura das verdades… Aquele “índice” insignificante a meio do segundo volume era uma remissão directa para a magnífica dissertação de doutoramento do homem e aquelas engraçadas linhas eram na verdade setecentas e três páginas sobre tudo o que há para saber de direitos da personalidade!!! Ai, como te odeio, Capelo de Sousa! (ups, acho que isto é uma ofensa ilícita à dignidade humana e à identidade do professor… mas é um desabafo meu! Talvez isso conte como causa de exclusão de ilicitude à violação destes direitos de personalidade…)
Muitos momentos de desespero depois, estas páginas de tese entaladas a ferros no programa acenderam-me uma luz (sim, tipo interruptor). Empurrar uma tese para um qualquer Secção III de um qualquer livro não editado é chegar a um patamar. E há tanta a gente a viver a vidinha por patamares… Quantos professores universitários não se vêem ascender ao patamar de Deus quando se tornam catedráticos? Do alto da sua cátedra contemplam a obra criada, ditam os apontamentos que outrora escreveram e não mexem mais no programa, que está finalmente perfeito, apenas acrescentando um índice pequenino a remeter para a tese. Infelizmente para nós, pobres estudantes, o destino está traçado. E a mensagem que passa, mesmo parecendo absurda, é a de comodismo e conformação: “eu já fiz a minha parte, já trabalhei muito e já mereci o meu descanso. Agora é a vossa vez de queimar as pestanas”. E se eu prezar as minhas pestanas? Talvez seja absurda esta interpretação, ou então não é assim tão ridícula e tem até algumas semelhanças com, imagine-se, a praxe. Os “doutores”, os veteranos, o deus catedrático… Uma escalada de grau em grau até ao topo! Quase como se confirmasse e, de algum modo, justificasse, a crença profundamente enraizada na hierarquia académica de que o tempo é factor único de valoração e que, quanto mais ele passa, mais alto se está no pedestal do respeito.
E eis que regressa o assombroso pensamento das setecentas páginas… Acho que, no meio disto tudo, já só me pergunto: por que é que alguém se lembra de escrever setecentas e três páginas sobre UM número de UM dos 2334 artigos do Código Civil? (estou claramente a hiperbolizar: o número dois também aparece).
Abençoada vida de estudante!