quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Adeus, meu telemóvel

É só um pedaço de tecnologia. São só uns quantos números. São só palavras trocadas tantas vezes. É só um telemóvel.
Eu não ligo muito ao telemóvel. No início, irritava-me aquele objecto estranho e nunca sabia onde o pôr. Mas, à medida que me ia habituando ao objecto estranho, ia-me afeiçoando a ele.
Há uns meses, quando ele tentou fazer um mortal à porta de minha casa (depois de imensas tentativas das quais não saiu ileso, ficando com vincados arranhões naquela carinha tola), ficou surdo e mudo. Foi para arranjar e recuperou o pio e o ouvido atento. Senti a falta dele durante um mês, apesar de ter tido um rasco substituto verde-ranho, que me incomodava profundamente na sua forma, lentidão e pouco fôlego para aguentar os dias. Para durar o mesmo que o outro (o meu), tinha de o carregar umas três vezes. Nunca confiei nele.
Estranhei as teclas e as cores do meu regressado telemóvel quando finalmente voltou para mim. Ah, bons tempos em que ele voltou a ouvir como dantes e a falar ainda melhor!
Só que o seu destino estava talvez traçado desde o início. A verdade é que nunca mais fez mortais e nunca me ameaçou fugir. Mas ontem... deixou-se seduzir por uma mão malvada que se meteu com a minha carteira na confusão carnavalesca. Ou então caiu, enquanto eu fugia da chuva, com um rabo com o triplo do tamanho do meu, umas calças brancas às pintas azuis e o resto da vestimenta igualmente parola e improvisada de velhos figurinos do Teuc. Mas só se a chuva me abriu a carteira.

Nunca gostei muito do Carnaval. Gostava quando era pequena, o fascínio de mascarar, pintar a cara, fascínio de todas as crianças. Mas há uns tempos que me irrita o Carnaval e a folia estúpida de gente tristonha e monótona que só se liberta vestida de mulher, de vampiro, de zorro ou de fada. E nem nos valem os cortejos, importados directamente do Brasil, cheios de um samba que não vale nada porque, por ser importado, lhe falta aquilo que mais lhe faz falta: a garra. Mas dancemos, dancemos e cantemos vestidos de gente que não somos até a festa acabar e o país voltar ao fado e às tricanas. Ao menos bebemos umas cervejas.
Não gosto muito do Carnaval. Há quem goste, e muito, e há muitas maneiras de viver o Carnaval. Como em tudo. Eu não gosto. Gosto, talvez, do fascínio (de criança?) de vestir a pele de outras pessoas, andar outros andares, falar outros falares, sentir outros sentires. Mas isto não é Carnaval, é teatro. Gosto do pouco de teatro que há no Carnaval.
Não gosto do Carnaval. E finalmente, em 2007, com a morte do meu telemóvel, percebo porquê: os foliões que são ladrões não deixam de ser ladrões só por serem foliões. E se a ocasião faz o ladrão, esta foi uma ocasião em que alguém se fez ladrão. Não há máscaras que mudem isso. Não há disfarces que mudem nada.

O que vale é que, no fundo, é só um pedaço de tecnologia. O resto – tudo o resto – não se rouba assim tão facilmente. Os números só têm valor porque são pontes para as pessoas. E essas sabem onde me encontrar. E eu a elas: há sempre outras pontes.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Absurdos

As pessoas fazem coisas absurdas a toda a hora. Ainda me lembro de ver um homem negro muito musculado e com uma boina vermelha enfiar-se dentro dum pequeno cubo de vidro muito transparente. Meus Deus, as horas que ele deve ter treinado aquela elasticidade para uns segundos de claustrofobia em que todos o aplaudiam! Realmente, as pessoas fazem coisas absurdas.
As pessoas fazem coisas absurdas e eu cada vez gosto mais do absurdo nas pessoas. O absurdo nas pessoas é a forma palpável do nosso lado absurdamente irracional, ilógico e imprevisível. E eu gosto disso. É como se, permitindo-nos ser absurdos, aceitássemos um pouco melhor a nossa própria vulnerabilidade, os nossos limites e fragilidades. Talvez o absurdo em nós seja um beijo de Deus, em que tantos amigos meus acreditam, mas um Deus que saiba dançar.
Talvez o absurdo seja uma das formas mais verdadeiras de ser humano. Quando nos permitimos ser absurdos, caem-nos todas as máscaras e é por isso que ser absurdo é tão assustador. Quando nos permitimos ser absurdos, permitimo-nos desarranjos que as máscaras escondem e ser humano não é mais do que ser desarranjado. Há em todos nós uma incrível desarrumação interior, um mais ou menos disfarçado caos sentimental, uma eterna incerteza quanto ao futuro. E ser absurdo é abrir uma janela para tudo isto e negar a tentadora compartimentação da existência em gavetinhas de dados adquiridos.
Há uma diferença muito subtil entre ser absurdo e ser ridículo. Ser ridículo é fazer coisas absurdas, mas sem ter consciência do grotesco em que se está a cair. O absurdo é deixar cair a máscara; o ridículo é pôr mais uma máscara e tentar ser algo que não se é. Não gosto muito do ridículo, mas fascina-me cada vez mais o absurdo.
Ser absurdo é também saber rir-se de si. Quando tropeçamos e caímos numas escadas à frente de imensas pessoas, temos duas saídas: ou berramos com a mais próxima e dizemos “Que é, nunca viste?!” ou nos rimos que nem loucos. A segunda é a mais absurda e inesperada, mas é a que gera mais empatia. Quem se ri de si abre espaço aos outros para se rirem consigo.
As pessoas fazem coisas muito absurdas. Às vezes, demasiado absurdas, tão demasiado absurdas que se tornam ridículas. É muito subtil, a diferença entre o absurdo e o ridículo. Mas não nos cabe a nós julgar quem é absurdo e quem é ridículo… até porque todos nós somos ambas as coisas de vez em quando. Há muitas coisas absurdas em todas as pessoas e em todas as vidas. Há coisas absurdamente boas e agradáveis e coisas absurdamente dolorosas. Há que ter paciência e saber rir quando a situação é para rir e chorar quando é para chorar. Mas sobretudo, há que ter muita paciência. Ser humano é ser absurdamente paciente com a vida.

domingo, fevereiro 11, 2007

Há momentos em que as orações encaixam tão bem...

Não te inquietes com as dificuldades da vida,
com os seus altos e baixos, com as suas decepções,
com o seu futuro mais ou menos sombrio.
Quer o que Deus quer.

Oferece-lhe no meio das inquietações e dificuldades
o sacrifício da tua alma simples que
aceita os desígnios da sua providência.

Pouco importa que te consideres um frustrado
se Deus te considera plenamente realizado ao seu modo.

Perde-te confiando cegamente nesse Deus
que te quer para si
e que chegará até ti, ainda que nunca o vejas.

Pensa que estás nas suas mãos,
tanto mais seguro
quanto mais decaído e triste te sintas.

Vive feliz. Vive em paz.
Que nada seja capaz de tirar-te a paz.
Nem a fadiga mental. Nem as tuas falhas.
Faz com que brote, e conserva sempre no teu rosto,
um sorriso doce, reflexo daquele que e Senhor
continuamente te dirige.

E no fundo do teu coração coloca, primeiro que tudo,
como fonte de energia e critério de verdade,
tudo aquilo que te enche da paz de Deus.

Lembra-te, tudo o que te oprime e te inquieta é falso:
asseguro-te em nome das leis da vida
e das promessas de Deus.

Por isso,
quanto te sintas desanimado e triste,
Adora e confia.

(Teilhard de Chardin)

sábado, fevereiro 10, 2007

A rotina

Acordou do lado errado da cama. E o seu estava vazio. Estremunhada, olhou para a mesa-de-cabeceira: 10h45m. Meus Deus! Estava atrasadíssima!
Saltou então da cama, maldisse o despertador, tomou um duche rápido, vestiu-se, bebeu café à pressa, lavou os dentes, pôs perfume e saiu de casa. Chegou tardíssimo à escola. E com uma nódoa de café bem imprópria. “Tenho de a trocar ao almoço”, pensou.
As duas primeiras aulas foram ao ar, obviamente trocadas por uma qualquer aula de substituição. Agora ainda tinha duas para dar, mas queria ver como justificava a falta. Simples: não justificava. Acordada já pelo café, desejou ter-se deixado adormecer mais duas horas… Pelo menos aproveitava o desleixo. Ai, ainda se eles gostassem de poesia…
As aulas correram muito mal. Devia ter tomado cinco cafés em vez de um, para acompanhar a pedalada dos miúdos. Pedalada, quer dizer, pedalada para a estupidez. Não sabia se era ela que estava a ficar velha, ou se era uma ideia feita, mas os miúdos pareciam-lhe cada vez mais insolentes e infantis.
Ao toque de saída da última aula, suspirou de alívio. E depois inspirou irritadamente, quando o relógio lhe disse que ainda só era hora de almoço. Que longo dia, que longo dia…
A caminho de casa ia tendo um acidente. Desta vez a culpa não era dela, a outra parva é que se meteu pela rotunda do lado errado e depois ia-se espetando em cima dela ao querer sair na terceira à direita. Imbecis. Conduz-se muito mal neste país… por sorte, não acontecera nada se não umas buzinadelas.
Em casa, era só ela para almoçar. O marido tinha um almoço de negócios com o sócio. O Francisco almoçava na escola e a Sofia ia almoçar em casa de uma amiga. Ok, almoçaria sozinha, então. Não tinha importância. Comia qualquer coisa. De qualquer modo, à tarde tinha uma reunião. Mais uma… Ainda havia uns restos no frigorífico.
Depois do almoço, fumou um cigarro, (ah, o primeiro do dia!) e só depois tomou café. Sim, fazia ao contrário de todos os fumadores: primeiro fumava, depois tomava o café. Os colegas implicavam com ela por causa disso e de todas as vezes ela resmungava que era assim que lhe sabia bem. Mesmo assim eles não se calavam.
Não chegou atrasada para a reunião e ainda teve tempo para outro cigarro. A este queimou-o depressa, deixando-lhe um beijo de insatisfação que se perdeu no cinzeiro.
A meio da reunião, telefonaram-lhe por causa do filho. Caíra numa aula de Educação Física e magoara o joelho. Foi com ele a correr às Urgências. Saiu de lá três horas depois, com uma entorse ligada na perna dele e, nela, uma irritação maldita contra o sistema de saúde do país.
Deixou o filho em casa e saiu a correr para ir buscar a filha a casa da amiga e levá-la ao ballet. Pelo caminho, e do banco de trás, aquela contou-lhe as peripécias todas do dia, incluindo a parte em que a Mariana lhe tinha dito que o papá dela é que era bom porque ganhava montes de dinheiro. Irritada, deu à filha uma qualquer resposta torta, de que logo se arrependeu quando lhe viu tremer o lábio inferior. Tentou remediar a situação com umas palavrinhas de consolo, mas o mal estava feito. A culpa comodamente instalada. “Logo a mamã vem buscar-te, sim querida?” A menina bateu com a porta, obviamente sem responder. E logo ali a culpa se transformou em revolta… com o país. Mas que raio de país é este?! Que estamos nós a fazer às nossas crianças?! Vêem televisão a mais, é o que é… e esquecem a poesia.
Entretanto o marido telefonou-lhe a pedir-lhe que fosse com ele comprar umas camisas. Há muito tempo que o seu marido não era seu marido… Teria outra? Ups, já estava. Foi só um breve segundo, menos, uns meros milésimos de segundo, mas o pensamento ali estava, automático e inquestionavelmente afirmativo. Agora, já racional: teria ele outra? Ou… ainda desejava ela ser sua mulher? Ultimamente, o seu corpo andava adormecido… mas o cansaço de ambos explicava tudo. “Sim, querido, vamos depois do jantar”.
Foi, então, buscar a filha ao ballet.
Chegara cinco minutos mais cedo. Estacionou o carro, desligou as luzes, o motor, puxou o travão de mão, tirou o cinto. Encostou-se para trás e pensou em descansar um bocadinho, enquanto a filha não vinha. A rádio tocava Maria Bethânia, “Agora não pergunto mais aonde vai a estrada. / Agora não espero mais aquela madrugada. / Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser, faca amolada.” Encostou o cotovelo na janela, deixou cair a testa sobre a mão e respirou fundo. Não foi preciso mais nada para as lágrimas caírem livremente.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Voto Não.

No dia 11 de Fevereiro, os portugueses vão ser chamados a pronunciar-se, em referendo, a favor ou contra a “despenalização da interrupção voluntária da gravidez se realizada, por opção da mulher, nas dez primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.” Eu respondo um convicto e mastigado ao longo de muitos anos Não.

Por detrás desta questão que é levada a referendo como uma "simples pergunta" sobre a despenalização de uma "vergonha nacional", escondem-se questões muito complexas que nos levam a questionar o modelo de sociedade em que vivemos, o modo como vemos a justiça e se ela funciona ou não, a abrirmos os olhos para dramas humanos que, estando tão perto, arrumamos na prateleira do real mas longínquo, a olharmos para o nosso círculo de valores e tentarmos pô-los em prática... questionando-os.

Começo por apresentar dois pontos em que eu penso que os dois lados têm em comum e que acabam por dificultar a escolha dos mais indecisos. Primeiro ponto: o aborto é um mal. É a exterminação de uma vida. Pode não ser pessoa, mas é uma vida humana. Não é um bicho, uma planta, ou (como infelizmente já ouvi alguém dizer) uma víscera. A prova está na imagem que postei no início do texto. É assim um feto de 10 semanas. Apesar de correr o risco de me chamarem piegas, ou de dizerem que sou estúpida ao recorrer a isto, penso que é importante saber-se que é a vida de um ser humano ASSIM que se elimina (e não interrompe). Segundo ponto: ninguém quer ver mulheres presas pela prática do aborto. Saiba-se que, com esta lei, nenhuma mulher foi ainda presa em Portugal por esta razão e que das sete que foram julgadas apenas uma foi penalizada e não se sabe por que razões (pode ter feito um aborto tardio, ou mais do que um,... não se sabe). Estamos todos dispostos a mudar a lei.

O sim e o não divergem quando, depois de termos sangrado discursos defendendo argumentos laterais, se chega à colisão de dois direitos. O direito à escolha da mulher e o direito à vida do feto. Parece-me que, enquanto o sim se centra apenas num dos direitos ignorando por completo o outro, o não faz uma ponderação muito mais razoável, sensata e humana dos dois valores. O não (ao contrário do que dizes, Rita) não quer deixar a lei como está. Eu, que defendo o não, falarei na primeira pessoa, sabendo (porque sou activista pelo não e tive a sorte de poder conversar imenso sobre este assunto com muita gente de ambas as partes) que falo pela maioria dos Nãos. Acho que o aborto clandestino é um problema real na sociedade. É assustador pensar na quantidade de abortos clandestinos que se fazem em Portugal. Penso, porém, que é ainda mais doloroso e assustador pensar no número de abortos que se vão passar a fazer se o sim ganhar. Tanto legais como os ilegais que não desaparecerão. Em Espanha o número triplicou! E pergunto a todos aqueles que dizem comigo que o aborto é um mal, como vão votar numa lei que vai triplicar esse mal? Ou será que o aborto só é mau quando é clandestino? Ou será que o aborto só é sinónimo de morte quando é feito em más condições e na obscuridade? O direito à vida impõem-se imperativamente à liberdade de escolha da mãe. Sem direito à vida, não há direito à escolha. E pergunto mais: defendem o direito à escolha mas só o da mulher! E o do pai? E o do filho? Qual é a justiça por detrás de uma escolha unilateralmente feita, quando há pelo menos mais dois intervenientes que têm uma palavra a dizer e que serão impedidos de o fazer porque a única que se poderá pronunciar é a mulher?

Despenalizar ou não despenalizar. Nesta pergunta que vem a referendo NÃO É a despenalização que está em causa. Primeiro, a pena não desaparece da lei. Se a mãe abortar nem que seja um dia depois do prazo absurdo estabelecido pela lei, será penalizada na mesma. Segundo, está em causa a liberalização. O aborto poderá ser feito por opção da mulher e sem ser necessário mais nenhuma condição. (Não me digam que o Governo já disse que haverá, CLARO, (clarissimo, sim!) cláusulas de restrição ou dissuasão. Porque aí digo-vos que outros políticos também já disseram que se o não ganhar, haverá novas propostas para serem analisadas na Assembleia, mais justas e que estabeleçam um equilíbrio mais justo entre os dois valores em colisão.)Ou seja, o aborto será livre, logo, liberalizado e não despenalizado. Por aqui se percebe que esta não é uma questão meramente jurídica e que como não podemos ver a questão que vai a referendo como uma questão de conflitos de direitos abstractos. Não esqueçamos que atrás de direitos estão sempre princípios, fundamentados em valores. Valores esses que estão assentes na ética. Esta questão tem tudo a ver com a ética.

Votar Não não é querer deixar tudo como está. Toda a gente já acordou para esta problema. Todo o país está desperto e, finalmente, percebe o que se passa tão perto mas tão longe. Esse é um argumento vazio. O não diz que não quer que o aborto seja livre até às dez semanas. O não diz que quer que a mulher tenha oportunidades para ter filhos e que o aborto não seja uma delas. O não concorda com a mudança de lei mas que esta seja uma mudança positiva e optimista! Que seja uma lei justa. A lei que temos agora não funciona e não é justa para as mulheres que continuam a abortar. Mas a lei que, se o sim ganhar, for aprovada não será justa nem para o filho, que morrerá, nem para a mãe, que vai pensar que assim resolve os seus problemas mas que em breve se aperceberá que vai ficar submersa em remorsos e sentimentosde culpa. O país sabe desta chaga social. Os políticos já a conhecem bem. Se o não ganhar a lei será mudada na mesma mas sem injustiças de parte a parte.

Entristece-me pensar que tanta gente veja no aborto a única saída para o desespero de uma mulher que engravidou sem planear nada. As Associações Pró-Vida ajudaram 100.000 mulheres, desde o último referendo. Estes são dados verídicos. Imaginem a quantas mulheres e bebés nnós poderiamos chegar com mais ajudas. Ajudas tanto do Estado como de todas as pessoas que ficaram alertadas para esta questão e que queiram participar. E acho que esta ideia não é idílica. Se tantas associações se formaram independentemente depois do último referendo, quantas mais não se poderiam formar agora! Entristece-me aperceber-me que a sociedade é cada vez mais uma sociedade negativista e que nós, portugueses, que nos aguentámos firmes na decisão de não permitir a pena de morte e o mostrámos orgulhosamente ao mundo, apresentamos o argumento "mas na Europa já quase todos fazem" como muito lógico. Sem sequer percebermos, aliás, que na Europa se começa a caminhar,agora, no caminho inverso e que, arrependidos, há países onde se paga aos casais uma pensão para promover a natalidade. Entristece-me que se uma mulher se vir pressionada a abortar pelo marido, pelo pai dela, pelas más condições económicas em que vive, a resposta mais fácil que ela encontrará será o aborto, oferecido pela sociedade. Fácil, não no sentido de ser tomada em ânimo leve mas fácil como mais rápida e ilusoriamente menos onerosa. Entristece-me pensar que esta lei acaba por ser reflexo de um desespero da sociedade. Que se agarra a este referendo como a única hipótese que tem para não manchar mais a "dignidade das mulheres" (Ainda alguém me tem de explicar como é que o aborto livre confere dignidade às mulheres e, principalmente, saúde.) sem sequer pensar que há mais opções. Reais. Concretizáveis. Bastas querermos.

Basta, a meu ver, votarmos Não. Por amor.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Não.

Prometo que vou tentar escrever um texto meu sobre este assunto. Não vou ter tempo (de certeza) para conseguir cumprir a minha proposta de escrever vários posts, cada um com uma Razão que me leva a votar não. O tempo, de facto, escasseia e não é elástico. Para já, deixo este texto do P. António Vaz Pinto.

P. António Vaz Pinto - Resposta a Frei Bento Domingues

(...)Limitado pelo tempo e pelo espaço, irei cingir-me a três tópicos referidos na sua crónica, que considero os mais importantes:

1. Consciência e norma ética. Pode ser útil referir Aristóteles, S. Tomás de Aquino ou J. Ratzinger, o actual Papa, para relembrar que a suprema instância de decisão ética para o cristão, acima da própria suprema autoridade eclesiástica, o Concílio ou o Papa, é a consciência individual. É doutrina mais que tradicional. Mas é bom ter presente que este princípio não vale apenas para a questão do aborto; se alguém se afirmar, cristão e simultaneamente, em consciência, defensor da escravatura, da pedofilia ou do racismo, que lhe dirá Frei Bento? Que lhe pode opor? Fica entregue a si próprio e a Deus... Importante, para todos, é informar e formar a consciência para que cada um possa decidir e agir em conformidade com a recta razão que é a norma ética. E é aqui que nos devemos situar: o que é conforme à razão, às exigências de natureza humana individual e colectiva?

2. A problemática jurídica e penal e os limites da tolerância. Numa sociedade laica e plural como é a nossa - e estou muito contente que assim seja -, os cristãos ou a Igreja não devem nem podem impor a sua "visão" aos outros membros da sociedade. Mas, tal como os membros de outras confissões, agnósticos e ateus, têm todo o direito e até o dever de propor valores e princípios, na busca de um denominador comum que permita a convivência, nunca totalmente pacífica, em sociedade...É precisamente disso que se trata: o ordenamento jurídico de uma dada sociedade, incluindo o ordenamento penal, tem pressupostos e valores donde brotam as diversas normas. Por exemplo, em Portugal, é proibido o roubo, o homicídio, o racismo, a difamação, etc. Quer isto dizer que a sociedade portuguesa, através dos seus legítimos representantes, legisladores, assume como valores e pressupostos a propriedade, a vida humana, a igualdade racial, o bom nome, etc., consagrando-os como "bens jurídicos", a preservar e defender.Essa é que é a questão que se coloca a todos nós, no próximo referendo: independentemente da nossa religião (ou ausência dela) em que modelo de sociedade queremos viver? Que valor consideramos maior? A vida humana, raiz de toda a dignidade e de todos os direitos, "inviolável", como diz a nossa própria Constituição (Artº 24, n. 1), ou consideramos que outros valores, vg. saúde, segurança, não humilhação, valem mais do que a própria vida? Dir-se-á: mas ninguém é obrigado a abortar; proibir o aborto é impor aos outros as nossas convicções: proibir a escravatura, o racismo e a pedofilia também é impor as nossas convicções àqueles que pensam doutra maneira... ou será que essas proibições devem desaparecer do Código Penal? Em cada momento, cada sociedade faz escolhas de carácter ético e, embora possa e deva, nas nossas sociedades pluralistas, deixar largas margens de liberdade e não se intrometer na vida e moral privada de cada um, tem de assegurar as normas jurídicas mínimas de convivência social. Quando a liberdade de um colide com a vida e a liberdade de outro, a sociedade pode e deve fazer escolhas e estabelecer limites. E estas escolhas são feitas sabendo-se de antemão que haverá quem não concorde, que haverá sempre maioria e minoria....O pluralismo não pode ser ilimitado e a própria tolerância levada ao extremo autodestrói-se...

3. "Por opção da mulher"Ao contrário da actual lei - com a qual não concordo, evidentemente (mas que tem o mérito de manter o princípio do respeito pela vida humana e da ilicitude do aborto, apenas abrindo excepções por razões ponderosas) - o que é proposto na pergunta agora colocada a referendo, embora se refira apenas a "despenalização do aborto", corresponde a uma realidade totalmente diferente: desde que praticado em estabelecimento de saúde autorizado e até às dez semanas, a prática do aborto, de facto e de direito, fica totalmente liberalizada e até financiada, dependendo apenas da vontade da mulher. Até às dez semanas, é o total arbítrio...Será isto justo, saudável, estará de acordo com os fundamentos do modelo de sociedade, defensora dos direitos humanos e da dignidade da vida humana, que demorou tantos séculos a construir? Se é certo que a mulher, na sociedade e na Igreja, foi e continua a ser injustamente discriminada, não parece sensato nem justo que se introduza agora uma discriminação positiva, em favor das mulheres, no campo jurídico e penal... O ser humano - homem e mulher - é capaz do pior e do melhor - sem distinção de sexo... Apesar de saber bem o rol de sofrimento da mulher que muitas vezes acompanha a prática do aborto, as pressões, sociais, familiares e afectivas a que está sujeita (muitas vezes do próprio homem que contribuiu para a concepção do feto), entregar à mulher, em total arbítrio, a decisão de vida ou de morte de um ser humano não é justo nem democrático. E diria exactamente o mesmo, é evidente, se o homem fosse o decisor...O combate ao aborto (que todos reconhecem como mal, incluindo os defensores do sim) não passa pela sua liberalização, mas pelo combate às suas raízes... Pais, escola, família, comunicação social, sociedade em geral, a Igreja e o Estado... todos temos culpas e todos temos muito a fazer... O apoio afectivo, psicológico, social e financeiro às mulheres - efectivo - é indispensável e urgente. Não sei qual será o resultado do referendo próximo. Mas sei que a luta pela vida continua e que o que tem futuro na história da humanidade não é o que destrói, mas o que fomenta a promoção integral da vida humana: o homem todo e todos os homens, sem excepção. Isso é que é ser universal, isto é, "católico"... Caro Frei Bento, espero encontrá-lo na próxima curva da nossa história, do mesmo lado, o lado da defesa dos direitos humanos, sem sim, nem mas...

in Público, 7.2.2007

Condicional

Pudesse eu ver o dia em que todos se ouvissem com respeito
E a linguagem dos Homens fosse única e humana,
Onde a violência, a fome, a dor e a ignorância
Fossem formas semânticas perdidas no passado…

Pudesse eu chegar ao dia em que não tivesse um preconceito
E o meu olhar sobre o mundo fosse puro e cristalino,
Sem molduras formatadas de pensar a realidade
E juízos sem valor escondidos em cada gesto…

Ah, pudéssemos nós construir um mundo perfeito!

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

O noivado do sepulcro

Hoje saiu no Público uma notícia com um título sugestivo:

"O noivado do sepulcro
Um grupo de arqueólogos em Itália encontrou dois esqueletos humanos abraçados, sepultados há 5000-6000 anos. A descoberta foi feita num local de escavações perto de Mantova e entusiasmou os historiadores. Os dois esqueletos devem ser de um homem e de uma mulher, embora isso ainda necessite de confirmação. O casal morreu jovem porque a maioria dos seus dentes estava intacta e pouco desgastada. Os testes a que vão ser sujeitos vão, provavelmente, acabar com este abraço de vários milénios."

A fotografia é irresistivelmente romântica, daquele romantismo oitocentista que brinda ao título do artigo. Soares de Passos e a sua obra-prima homónima estarão certamente às voltas de contentamento profundo na campa, juntinhos num abraço eterno e romântico. Que pena nunca se ter autopsiado o seu poema!

"Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só."

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Os livros (ode à época de exames)

Ó eterna maravilha do mundo!
Ó gloriosa eternidade dos Homens!
De século em século, teu saber
Consagrado permanece escrito,
Ganhando pó em bibliotecas
Espalhadas por toda a Terra!

Ó magnânime voz de todos nós!
Ó espantosa magia das palavras!
Céus, que fabuloso monumento!
Pensadores, cientistas, físicos
Escritores, artistas, teólogos,
E todos eles mortos agora!

Ó majestoso receptáculo de sabedoria,
Ó esplendoroso ninho da Humanidade…
Como é tanto e tão pouco o que encerras,
Como é tudo e contudo é nada…
Páginas e páginas de pessoas,
De vida tipografada, e para quê?

Ó pecaminoso saber, pecaminoso!!!
Ó teoria, teoria – poesia e só teoria…
Cremava os livros todos desta Terra
Na magnífica pira da inutilidade
Se ao sabor das cinzas da História
Atingisse finalmente a Liberdade…

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Talvez

A princípio, situava-me nessa mancha enorme e informe de indecisos. Num Universo de sim e não, de certezas e de dogmas, de posições óbvias, de branco e preto, situava-me na mancha inconvicta do talvez. Não sei se há mérito em ser-se talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem quer ouvir não (Pepetela), e nesse sentido tanto pode ser visto como uma capacidade de ver todos os ângulos da questão como uma incapacidade de tomar uma posição. Independentemente disto, um talvez é sempre um impasse. Um talvez é um bom ponto de partida, mas a dúvida só é útil se com ela sondarmos as várias possibilidades e pudermos informadamente tomar uma decisão. E foi assim que do talvez cheguei ao sim.

A pergunta que vai a referendo é já conhecida de todos: Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado? Frei Bento Domingues, neste seu texto, coloca muito esclarecidamente a questão: não se trata de saber quem é e quem não é pelo aborto, neste prazo e nestas condições, mas quem é ou não pela penalização da mulher que aborta neste prazo e nestas condições.

É inevitável discutir, a propósito disto, filosofias, direitos, éticas e morais. E é bom que se o faça. Só que se perde, assim, o essencial da questão, caindo-se naquele impasse do talvez, porque no que toca a filosofias, direitos, éticas e morais, todas as posições são subjectivas e o consenso é uma impossibilidade fatal. E parece-me que a questão fulcral aqui é a questão do aborto clandestino.

A verdade é que se fala muito na liberalização do aborto que esta alteração ao Código Penal, a ser feita, vai trazer, mas o facto é que liberalizado se encontra ele agora, à margem da lei, na clandestinidade. Achei interessante que Vital Moreira falasse não só em despenalização, mas também em “desclandestinização”, porque na verdade também é disso que se trata. Na situação actual, o aborto é um negócio sujo que enche os bolsos de muita gente, à custa da saúde e vida de muitas mulheres. E os embriões perdem-se para caixotes do lixo de ruas onde não passamos por pudor e ignorância. As vantagens de trazer o problema do aborto para a legalidade prendem-se, sobretudo, com o facto de as mulheres que hoje abortam, em situações que nem imagino e por razões que, imaginando, desconheço, entrarem no Sistema Nacional de Saúde (SNS), onde terão acesso a informação e acompanhamento médico e psicológico. Trata-se de se poder tomar uma decisão informada em vez de uma desesperada e silenciosa, por falta de outros recursos. Ao entrar no SNS, a mulher e o companheiro (se este se não demitir das suas funções ou se não o demitirem), entram nesse maravilhoso mundo da burocracia informatizada. Nós, portugueses, estamos habituados a uma burocracia excessiva e morosa que tanto nos irrita, mas neste caso é essa burocracia que assegura à mulher um acompanhamento personalizado e cuidado. E as razões íntimas que a levam a abortar deixarão de ficar no ceptro do seu útero raspado e passarão a fazer parte de uma ponderação reflectida e acompanhada.

O problema do aborto é, também, o combate aos factores que levam a gravidezes indesejadas. Embora ainda esteja longe da maternidade, vejo-a e à paternidade como um projecto transcendente de amor e responsabilidade. A maternidade e a paternidade deveriam ser algo querido e desejado. Mesmo quando uma gravidez aconteça indesejadamente, só faz pleno sentido se passar a ser desejada. Por isso (e este é possivelmente o único ponto de convergência do sim e do não, para além da condenação do aborto em si), é de enorme importância que se aposte na criação e reafirmação de infra-estruturas e mecanismos de combate efectivo a esses factores. Já existem instituições de apoio à grávida, mas a verdade é que são insuficientes. Já existe uma panóplia de métodos contraceptivos à disposição, e são cada vez mais divulgados, mas a verdade é que isso não chega (e há ainda que considerar a sua falibilidade). Fala-se em Educação Sexual, mas nunca se viu nada palpável, e é tão evidente o tabu que ainda é a sexualidade nesta sociedade reprimida pós revolução sexual. O facto de se legalizar o aborto não impede – pelo contrário, estimula – que se aposte em tudo isto. Porque obviamente ninguém quer que o aborto se torne num método contraceptivo (se bem que seria sempre um contraceptivo violento e doloroso, invasor da intimidade da mulher, e cruel para o embrião).

A questão a referendo leva-nos ainda a falar de prazos. As dez semanas levantam obviamente as tais questões filosóficas e éticas e morais e de direitos. O problema é que, para despenalizar o aborto, para acrescentar uma alínea ao artigo do Código Penal, será sempre preciso estabelecer um prazo, sob pena de se cair na arbitrariedade total. Vital Moreira, que sabe infinitamente mais do que eu em questões de direito, considera moderado o prazo das dez semanas, sobretudo comparando-o com os de outros países da Europa que vão até às doze. Sustenta que dez semanas é um prazo suficiente para que a mulher se aperceba da sua gravidez e pondere sobre as razões que a levaram a considerar a hipótese de abortar. Por outro lado, considera também que no período indicado o desenvolvimento do feto é ainda muito incipiente, faltando designadamente o sistema nervoso e o cérebro, pelo que não faz sentido falar num ser humano, muito menos numa pessoa. E tanto Vital Moreira como Frei Bento Domingues citam o padre Anselmo Borges, professor de Filosofia na Universidade de Coimbra, para sustentar a sua argumentação em relação a este ponto: “a gestação é um processo contínuo até ao nascimento. Há, no entanto, alguns “marcos” que não devem ser ignorados. (...) Antes da décima semana, não havendo ainda actividade neuronal, não é claro que o processo de constituição de um novo ser humano esteja concluído.” Inevitavelmente, este ponto é muito sensível. E é importante considerá-lo, embora no início tenha dito que é de algum modo um desvio do ponto central. E é sensível porque levanta as perguntas do início da vida humana e dos direitos humanos. Eu não sei quando começa a vida humana, tal como não sei qual o sentido da vida, se o há. Na verdade, parece-me mesmo fatalmente impossível responder a qualquer uma destas questões (não é esse também o fascínio da Filosofia?). É certo que bate um coração no feto, pelos vistos não é tão clara a existência de um cérebro até às dez semanas. Mas também é verdade que é imensamente complexo o processo de desenvolvimento humano, sobretudo no seu início. A referência do cérebro do embrião fez-me pensar que não deixa de ser curioso que para efeitos jurídicos a morte física seja declarada quando o cérebro deixa de funcionar, devido à impossibilidade de regeneração das suas células. Assim, a morte física é a morte cerebral. É óbvio que não podemos reger-nos por um critério jurídico para determinar o início da vida humana, mas não deixa de ser curioso reparar na importância do cérebro na determinação jurídica de prazos.

Mas se o prazo das dez semanas levanta questão difícil, essa é a questão dos direitos, que é, na verdade, um problema de colisão de direitos. Quando vi Fernando Santos declarar da sua bancada do não no Prós e Contras que o problema da despenalização era uma “falsa questão” e que o verdadeiro problema era o do direito à vida, senti uma espécie de nó no estômago. A verdade é que esta simples expressão representa uma certa incapacidade de compreender o que vai a referendo no dia 11. O que vai a referendo não é o começo da vida, não é uma questão de direitos fundamentais, não é uma questão moral. Seria absurdo qualquer uma destas questões ir a referendo, para além de que a Constituição o proibe. O que vai a referendo é, como disse no início, saber se uma mulher que faça um aborto no prazo e nas condições previstas deve ou não ser penalizada. Obviamente que, na consciência de cada um, esta questão levanta um problema de direitos. E esse não é só um problema ético e moral, mas também jurídico.

É difícil discutir os direitos porque é irresistível pegarmos neste e naquele artigo da Constituição para moldarmos a lei ao nosso ponto de vista. Se é verdade que a lei constitucional consagra o princípio à vida, afirmando-a como inviolável, também é verdade que faz assentar o Estado de Direito democrático em que vivemos no princípio da inviolável dignidade humana. A Constituição protege também a integridade física e moral das pessoas e o direito à liberdade. Aliás, a personalidade humana está também tutelada no Direito Civil, naquele tal artigo das setecentas e três páginas. E engloba de igual modo o direito à vida, à dignidade, à liberdade, à identidade, à honra… e tantos outros.

E assim se esbarra na existência de dois direitos em colisão: o direito à vida e a uma gestação processada de modo próprio por parte do concebido, e o direito à dignidade humana e à liberdade de escolha por parte da mulher. Juridicamente, só a mulher, por ter personalidade jurídica (que se adquire no momento do nascimento completo e com vida), tem a plenitude destes direitos. Mas o concebido, enquanto elemento frágil, também tem direito a protecção jurídica. Por exemplo, a tutela da personalidade do concebido abrange a sua personalidade moral, podendo ser civilmente indemnizáveis as injúrias e difamações ao nascituro concebido. Isto mostra bem a complexidade da questão. Mas em direito, as questões de colisão de direito resolvem-se através de uma de duas maneiras: ou se considera que os direitos são de espécie igual e se busca um compromisso, ou se considera que um dos direitos é superior e deve prevalecer, lesando no mínimo o direito considerado inferior. Claro que o ideal era, como aprendemos desde pequeninos, conseguir chegar sempre a um compromisso. Contudo, a maior parte das vezes isso é impossível. Aqui, bem se vê, não é possível encontrar um compromisso porque não é possível a mulher abortar e o embrião viver em simultâneo. Portanto, há um direito que deve prevalecer sobre o outro. A sensibilidade desta escolha está no facto de, no fundo, estarem em causa dois direitos à vida. No caso do embrião está em causa o direito à consecução do nascimento com vida e no caso da mulher está em causa o direito à dignidade humana, à autodeterminação e ao livre desenvolvimento da personalidade. A dificuldade está em determinar qual deve ceder. E esse é um passo que passa da constatação à decisão. E é aí que divergem o “sim” e o “não”. Eu admito que me é difícil determinar qual destes direitos deve prevalecer, e admito também que, ao votar sim, estou a escolher o direito da mulher face ao do embrião, até às dez semanas e num estabelecimento de saúde autorizado. Percebo também que a afirmação incondicional do direito à vida seja o melhor argumento do não. A única fragilidade deste argumento é que, votando não e mantendo o aborto clandestino tal como está, o direito à vida do embrião continuará a ser violado descaradamente – e o da mulher também.

Não

Acho que se impõe que exponha este ponto de vista primancial para depois voltar às razões que justificam a minha opção.

O que está em causa neste referendo não é simples. é um assunto verdadeiramente complexo e complicado. Tentando chegar ao cerne da questão, penso que tudo se resume, objectivamente, ao confronto de dois direitos essenciais ao ser humano. De um lado temos o direito à vida. Do outro o direito à liberdade. Ouço muitos a dizer que o NÃO apenas pesa um dos lados (o direito à vida) esquecendo por completo o outro. Não é verdade. Aliás, enquanto que posso afirmar com plena confiança que nunca ouvi nenhum apoiante do sim falar do outro lado da balança, do direito à vida, posso também e felizmente afirmar com alegria que o não não esquece o lado que quase cega os apoiantes do sim - O lado da mulher. Esta ponderação entre os dois direitos é difícil e desenha com uma linha muito ténue o limite daquilo que subjectivamente será mais justo. Penso que é um erro centrarmo-nos na mulher, nos direitos que ela tem, no que sofre ao fazer um aborto clandestino, e esquecermo-nos que o núcleo do seu problema é um embrião, uma vida que se desenvolve dentro dela. Devemos invocar o direito à escolha da mulher sobre a morte desta vida? Que Direito é o nosso? Isso sim, seria uma sociedade injusta. O direito serve para protejer os mais fracos, os que têm menos voz. Há mil e um mecanismos de defesa do que não se podem defender por eles mesmos. É claro que algumas mulheres que abortam desenvolvem problemas pós-abortivos. Mas não nos esqueçamos que isso não acontece só nos abortos ilegais! Também nos legais ela corre riscos! pode ficar esteril! pode desenvolver infecçoes e reacçoes complicadissimas. Entra maioritariamente em depressao! Muitas ponderam o suicidio! Além disso, e o outro lado? a vida (sim, VIDA) que se esta a desenvolver dentro dela? POr estar dentro da sua barriga a mulher tem o direito de optar para que ela viva ou não? Tipo apêndice?começa a dar problemas, bora remove-lo? E dizem-me que a lei é mais justa? Onde está a justiça no meio de tudo isto? Penso que o lado da balança que mais pesa é o da vida. Porque, aliás, é um direito que ultrapassa até o direito à liberdade. Sem VIDA não há LIBERDADE. Nem de escolha nem de coisa nenhuma. Acho que esta lei não vai melhorar nada. O número de mortes vai aumentar. As complicaçoes pós-abortivas da mulher não vão desaparecer. O aborto clandestino não vai desaparecer. A educaçao sexual vai deixar de fazer qualquer sentido. O aborto vai ser liberalizado até às dez semanas, prazo que também não tem qualquer sentido. A mulher vai poder abortar sem dar QUALQUER razao. Apenas porque sim. Esta lei pode funcionar apenas silenciosamente e não ser, de facto, verdadeiramente eficaz. Mas em que lei estaremos nó a votar? Que JUSTIÇA traz esta nova lei?