quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Talvez

A princípio, situava-me nessa mancha enorme e informe de indecisos. Num Universo de sim e não, de certezas e de dogmas, de posições óbvias, de branco e preto, situava-me na mancha inconvicta do talvez. Não sei se há mérito em ser-se talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem quer ouvir não (Pepetela), e nesse sentido tanto pode ser visto como uma capacidade de ver todos os ângulos da questão como uma incapacidade de tomar uma posição. Independentemente disto, um talvez é sempre um impasse. Um talvez é um bom ponto de partida, mas a dúvida só é útil se com ela sondarmos as várias possibilidades e pudermos informadamente tomar uma decisão. E foi assim que do talvez cheguei ao sim.

A pergunta que vai a referendo é já conhecida de todos: Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado? Frei Bento Domingues, neste seu texto, coloca muito esclarecidamente a questão: não se trata de saber quem é e quem não é pelo aborto, neste prazo e nestas condições, mas quem é ou não pela penalização da mulher que aborta neste prazo e nestas condições.

É inevitável discutir, a propósito disto, filosofias, direitos, éticas e morais. E é bom que se o faça. Só que se perde, assim, o essencial da questão, caindo-se naquele impasse do talvez, porque no que toca a filosofias, direitos, éticas e morais, todas as posições são subjectivas e o consenso é uma impossibilidade fatal. E parece-me que a questão fulcral aqui é a questão do aborto clandestino.

A verdade é que se fala muito na liberalização do aborto que esta alteração ao Código Penal, a ser feita, vai trazer, mas o facto é que liberalizado se encontra ele agora, à margem da lei, na clandestinidade. Achei interessante que Vital Moreira falasse não só em despenalização, mas também em “desclandestinização”, porque na verdade também é disso que se trata. Na situação actual, o aborto é um negócio sujo que enche os bolsos de muita gente, à custa da saúde e vida de muitas mulheres. E os embriões perdem-se para caixotes do lixo de ruas onde não passamos por pudor e ignorância. As vantagens de trazer o problema do aborto para a legalidade prendem-se, sobretudo, com o facto de as mulheres que hoje abortam, em situações que nem imagino e por razões que, imaginando, desconheço, entrarem no Sistema Nacional de Saúde (SNS), onde terão acesso a informação e acompanhamento médico e psicológico. Trata-se de se poder tomar uma decisão informada em vez de uma desesperada e silenciosa, por falta de outros recursos. Ao entrar no SNS, a mulher e o companheiro (se este se não demitir das suas funções ou se não o demitirem), entram nesse maravilhoso mundo da burocracia informatizada. Nós, portugueses, estamos habituados a uma burocracia excessiva e morosa que tanto nos irrita, mas neste caso é essa burocracia que assegura à mulher um acompanhamento personalizado e cuidado. E as razões íntimas que a levam a abortar deixarão de ficar no ceptro do seu útero raspado e passarão a fazer parte de uma ponderação reflectida e acompanhada.

O problema do aborto é, também, o combate aos factores que levam a gravidezes indesejadas. Embora ainda esteja longe da maternidade, vejo-a e à paternidade como um projecto transcendente de amor e responsabilidade. A maternidade e a paternidade deveriam ser algo querido e desejado. Mesmo quando uma gravidez aconteça indesejadamente, só faz pleno sentido se passar a ser desejada. Por isso (e este é possivelmente o único ponto de convergência do sim e do não, para além da condenação do aborto em si), é de enorme importância que se aposte na criação e reafirmação de infra-estruturas e mecanismos de combate efectivo a esses factores. Já existem instituições de apoio à grávida, mas a verdade é que são insuficientes. Já existe uma panóplia de métodos contraceptivos à disposição, e são cada vez mais divulgados, mas a verdade é que isso não chega (e há ainda que considerar a sua falibilidade). Fala-se em Educação Sexual, mas nunca se viu nada palpável, e é tão evidente o tabu que ainda é a sexualidade nesta sociedade reprimida pós revolução sexual. O facto de se legalizar o aborto não impede – pelo contrário, estimula – que se aposte em tudo isto. Porque obviamente ninguém quer que o aborto se torne num método contraceptivo (se bem que seria sempre um contraceptivo violento e doloroso, invasor da intimidade da mulher, e cruel para o embrião).

A questão a referendo leva-nos ainda a falar de prazos. As dez semanas levantam obviamente as tais questões filosóficas e éticas e morais e de direitos. O problema é que, para despenalizar o aborto, para acrescentar uma alínea ao artigo do Código Penal, será sempre preciso estabelecer um prazo, sob pena de se cair na arbitrariedade total. Vital Moreira, que sabe infinitamente mais do que eu em questões de direito, considera moderado o prazo das dez semanas, sobretudo comparando-o com os de outros países da Europa que vão até às doze. Sustenta que dez semanas é um prazo suficiente para que a mulher se aperceba da sua gravidez e pondere sobre as razões que a levaram a considerar a hipótese de abortar. Por outro lado, considera também que no período indicado o desenvolvimento do feto é ainda muito incipiente, faltando designadamente o sistema nervoso e o cérebro, pelo que não faz sentido falar num ser humano, muito menos numa pessoa. E tanto Vital Moreira como Frei Bento Domingues citam o padre Anselmo Borges, professor de Filosofia na Universidade de Coimbra, para sustentar a sua argumentação em relação a este ponto: “a gestação é um processo contínuo até ao nascimento. Há, no entanto, alguns “marcos” que não devem ser ignorados. (...) Antes da décima semana, não havendo ainda actividade neuronal, não é claro que o processo de constituição de um novo ser humano esteja concluído.” Inevitavelmente, este ponto é muito sensível. E é importante considerá-lo, embora no início tenha dito que é de algum modo um desvio do ponto central. E é sensível porque levanta as perguntas do início da vida humana e dos direitos humanos. Eu não sei quando começa a vida humana, tal como não sei qual o sentido da vida, se o há. Na verdade, parece-me mesmo fatalmente impossível responder a qualquer uma destas questões (não é esse também o fascínio da Filosofia?). É certo que bate um coração no feto, pelos vistos não é tão clara a existência de um cérebro até às dez semanas. Mas também é verdade que é imensamente complexo o processo de desenvolvimento humano, sobretudo no seu início. A referência do cérebro do embrião fez-me pensar que não deixa de ser curioso que para efeitos jurídicos a morte física seja declarada quando o cérebro deixa de funcionar, devido à impossibilidade de regeneração das suas células. Assim, a morte física é a morte cerebral. É óbvio que não podemos reger-nos por um critério jurídico para determinar o início da vida humana, mas não deixa de ser curioso reparar na importância do cérebro na determinação jurídica de prazos.

Mas se o prazo das dez semanas levanta questão difícil, essa é a questão dos direitos, que é, na verdade, um problema de colisão de direitos. Quando vi Fernando Santos declarar da sua bancada do não no Prós e Contras que o problema da despenalização era uma “falsa questão” e que o verdadeiro problema era o do direito à vida, senti uma espécie de nó no estômago. A verdade é que esta simples expressão representa uma certa incapacidade de compreender o que vai a referendo no dia 11. O que vai a referendo não é o começo da vida, não é uma questão de direitos fundamentais, não é uma questão moral. Seria absurdo qualquer uma destas questões ir a referendo, para além de que a Constituição o proibe. O que vai a referendo é, como disse no início, saber se uma mulher que faça um aborto no prazo e nas condições previstas deve ou não ser penalizada. Obviamente que, na consciência de cada um, esta questão levanta um problema de direitos. E esse não é só um problema ético e moral, mas também jurídico.

É difícil discutir os direitos porque é irresistível pegarmos neste e naquele artigo da Constituição para moldarmos a lei ao nosso ponto de vista. Se é verdade que a lei constitucional consagra o princípio à vida, afirmando-a como inviolável, também é verdade que faz assentar o Estado de Direito democrático em que vivemos no princípio da inviolável dignidade humana. A Constituição protege também a integridade física e moral das pessoas e o direito à liberdade. Aliás, a personalidade humana está também tutelada no Direito Civil, naquele tal artigo das setecentas e três páginas. E engloba de igual modo o direito à vida, à dignidade, à liberdade, à identidade, à honra… e tantos outros.

E assim se esbarra na existência de dois direitos em colisão: o direito à vida e a uma gestação processada de modo próprio por parte do concebido, e o direito à dignidade humana e à liberdade de escolha por parte da mulher. Juridicamente, só a mulher, por ter personalidade jurídica (que se adquire no momento do nascimento completo e com vida), tem a plenitude destes direitos. Mas o concebido, enquanto elemento frágil, também tem direito a protecção jurídica. Por exemplo, a tutela da personalidade do concebido abrange a sua personalidade moral, podendo ser civilmente indemnizáveis as injúrias e difamações ao nascituro concebido. Isto mostra bem a complexidade da questão. Mas em direito, as questões de colisão de direito resolvem-se através de uma de duas maneiras: ou se considera que os direitos são de espécie igual e se busca um compromisso, ou se considera que um dos direitos é superior e deve prevalecer, lesando no mínimo o direito considerado inferior. Claro que o ideal era, como aprendemos desde pequeninos, conseguir chegar sempre a um compromisso. Contudo, a maior parte das vezes isso é impossível. Aqui, bem se vê, não é possível encontrar um compromisso porque não é possível a mulher abortar e o embrião viver em simultâneo. Portanto, há um direito que deve prevalecer sobre o outro. A sensibilidade desta escolha está no facto de, no fundo, estarem em causa dois direitos à vida. No caso do embrião está em causa o direito à consecução do nascimento com vida e no caso da mulher está em causa o direito à dignidade humana, à autodeterminação e ao livre desenvolvimento da personalidade. A dificuldade está em determinar qual deve ceder. E esse é um passo que passa da constatação à decisão. E é aí que divergem o “sim” e o “não”. Eu admito que me é difícil determinar qual destes direitos deve prevalecer, e admito também que, ao votar sim, estou a escolher o direito da mulher face ao do embrião, até às dez semanas e num estabelecimento de saúde autorizado. Percebo também que a afirmação incondicional do direito à vida seja o melhor argumento do não. A única fragilidade deste argumento é que, votando não e mantendo o aborto clandestino tal como está, o direito à vida do embrião continuará a ser violado descaradamente – e o da mulher também.

10 comentários:

Anónimo disse...

Tenho lido bastantes coisas sobre o sim e o não neste referendo, muitas delas enquanto navego na blogosfera e também li esse texto de Frei Bento Domingues no Público deste sábado.
Parece-me que ele pôs o dedo na ferida nos vários pontos da sua argumentação enquanto "eu imcompetente me confesso...", e termina competente e pragmático com duas afimrações que na minha prespectiva resumem bem o que tem sido o debate deste tema.
Bem haja pela sua lucidez, e pela forma como a transmitiu, até me conseguio fazer sorrir.
A ideia fulcral é essa, ninguém quer obrigar ninguém a abortar, e a moral neste caso deverá ficar com cada um e não ser imposta aos outros.
A extensa análise que faz desta questão demonstra bem o seu talvez e as suas razões, que me parecem lúcidas, no entanto, não podemos votar talvez, e a decisão que tomarmos afectará a vida de muitas pessoas.
Por isso vou votar e votarei sim

Mónica (em Campanhã) disse...

não conhecia o texto do Frei B Domingues; obrigada. sinto-me um pouco menos sozinha

rita disse...

Agradeço os vossos comentários. Entretanto apercebi-me de que me esqueci de pôr um link para os textos que li de Vital Moreira. Estão no blog "Causa Nossa" (www.causa-nossa.blogspot.com) e no "Aba da Causa" (http://aba-da-causa.blogspot.com), um blog de apoio ao "Causa Nossa", com os textos que os autores de ambos publicam na imprensa.

Em relação ao referendo, confesso que começo a ficar cansada de tanta esgrima, sobretudo à medida que o dia 11 se aproxima. Cada vez me parece menos óbvia uma qualquer solução e é por isso que o meu sim vai ter sempre uns cheirinhos de talvez. Mas pronto, no boletim só há um sim e esse é sem cheiros.

Anónimo disse...

Qual é o direito da mulher sobre o feto? não percebi.

Anónimo disse...

Querida Rita!O teu texto está muito inteligente, e honesto, coisa que começa a ser rara nesta discussão. Decidi comentá-lo porque me parece que vais entender o que te te vou dizer, e (quem sabe?)reler o teu texto á luz do que entenderes. Parece-me que não és daqueles "sins" que não vêm na vida intra-uterina nenhum bem a ser defendido, nem no aborto nenhuma conutação negativa, moral ou social. E é por isso que vou partilhar duas ou três coisas que me levaram a pensar que talvez tenhas cortado por um atalho matreiro no caminho do teu raciocínio. Vou começar pelos teus últimos parágrafos. Falas de uma balança em que sepesa o direito á vida do feto o direito de escolher da mulher. Aqui parece-me ver uma lógica claramente falaciosa: basta recnhecer-se o direito á vida do feto para se rejeitar o direito da mulher de escolher sobre ela, e basta reconhecer o direito de escolha da mulher para se rejeitar o direito á vida do feto.São,como vês,inconciliáveis, pelo que não estamos perante dois valores pesados na mesma balança, mas perante duas perspectivas que mutuamente se excluem, e entre as quais deves optar para saires do teu talvez. Existe, no entanto uma balança,na qual se pesam dois valores:num prato, o drama do aborto clandestino, no outro a protecção da vida intra-uterina.Inegável reconhecer o grande mal que é o primeiro,bem como o mal que é a abdicação do segundo.O erro em que a meu ver se caiu foi ver na balança o Direito. É que obrigar o direito a escolher entre a protecção de duas vidas(a das mulheres vítimas de aborto clandestino e a dos fetos vítimas de aborto clandestino e legal), seria dar-lhe uma existência essencialmente pragmática,seria dar-lhe por fundamento o valor da segurança(que acaba por ser um fim,e não um princípio),ao invés de o subordinar a esse sonho perseguido desde o fundo dos séculos a que chamamos JUSTIÇA.Não cabe ao direito essencialmente, unicamente, "resolver problemas", "acabar com males".Dizes que uma lei minimamente restritiva sobre o aborto não acabaria com os abortos. Mas claro que não! A lei nunca funcionou!Todos os crimes que como tal classificou continuaram, a continuarão a ser praticados em maior ou menor número.Mas é por isso que ela deixa de fazer sentido?Não,porque esse sentido não reside num fim mas num princípio.A lei traça uma linha entre o que é legítimo e ilegítimo, o que é certo e é errado, e é nela que se cria,estabelece e desenvolve a consciência da humanidade. Liberalizar o aborto, com base numa suposta "escolha entre males" que não compete á lei fazer,é passá-lo de um lado da linha para o outro. Daqui a uns anos( talvez não daqui a dez, nem a qinze, mas a trinta),nada fará crer que há algo de errado no aborto se a lei o reconhecer como direito da mulher. Por isso é aqui que a tua reflexão deve incidir:o feto tem direito á vida? é o aborto legítimo? Se repondes não á primeira sim á segunda, o voto sim está defacto em consonância com o teu pensamento;se não,há que pensar.
Não deves tb esquecer que o que nos oferecem é iuma liberalização, quando nos podiam propor uma simples despenalização das mulheres(que não impediria os médicos que fazem do aborto um negócio de prestar contas),e que trataria as mulheres, não como criminosas, mas como vítimas de uma sociedade que impõe a escolha entre duas vidas, recusando-se a abraçar o esforço de as salvar ás duas. E pronto, era isto que tinha para dizer.um abraço!

rita disse...

Confesso que gostei bastante do teu comentário, que senti muito equilibrado, lógico e nada radical. Só tive pena de não ter percebido quem eras (espero que tenhas idade suficientemente próxima da minha para te tratar por tu), mas provavelmente esqueceste-te de pôr o nome.

Em relação ao que disseste, e começando pelo princípio, tens razão, não sou um daqueles "sins" que não vêem na vida intra-uterina um bem a ser defendido (e acho que a protecção penal não é a única protecção jurídica). Em relação a "sins" que não vêem no aborto um "mal", sou ingénua ao ponto de acreditar que não há nenhum. Quero, enquanto pessoa humana, acreditar que não há ninguém a defender o "instituto" do aborto. É verdade que não sou nenhum "sim" activista, não pertenço a nenhum movimento, não quero convencer ninguém do magnífico que é votar sim. Foi já bastante difícil o processo de pesar todos os aspectos (que muitas vezes não são passíveis de pesar assim numa balança) e de chegar à conclusão de que, enquanto cidadã, me parece que o voto sim abre mais possibilidades do que o voto não. Só isso.

Em relação ao teu raciocínio sobre o que disse quanto aos direitos em questão, admito que talvez tenha visto as coisas de uma perspectiva demasiado jurídica e, digamos assim, linear. Mas a verdade é que todas as perspectivas são limitadas e não há uma perspectiva certa. Há apenas perspectivas coerentes e ponderadas, equilibradas, e perspectivas extremas. Por isso é sempre tão difícil discutir o que quer que seja. Contudo, tenho também de dizer aqui que, transpondo esta "colisão" entre os dois direitos à vida para o plano do direito civil, estava apenas a tentar perceber como é que se poderia resolver esta questão. Hipoteticamente, que é o que se faz quando nos apresentam linearmente um caso prático em que há direitos em colisão. Obviamente, o direito não pode (não devia) ser instrumentalizado. Não sei se foi isso que dei a entender no texto... apenas tentei perceber qual é afinal a dimensão de ambos os direitos e até que ponto um pode prevalecer sobre o outro.

Quanto ao Direito não poder ter uma existência pragmática, aí estou em total desacordo contigo. Estariamos muito mal se o direito ficasse fechado nos calhamaços e teses que se passeiam por aquela (e outras) faculdade. A verdade é que o direito existe para resolver problemas e, para isso, tem de "sujar" as mãos na prática. Obviamente, como concordamos os dois/as duas(?), não deveria ser instrumentalizado nem posto ao serviço de interesses particulares. A segurança de que falaste é um princípio fundamental do direito, que existe também para garantir aos cidadãos uma convicência em sociedade. É também um fim no sentido em que é uma meta. Acho que esta é uma daquelas coisas em que o que se vê depende da perspectiva...

Foste bastante fiel ao que eu disse em todo o teu comentário, mas houve uma frase que, talvez por usares o condicional, me parece teres desvirtuado o que eu disse: "Dizes que uma lei minimamente restritiva sobre o aborto não acabaria com os abortos." Não me lembro de ter falado disto. Talvez te refiras ao facto de eu ter dito que, votando não, as coisas ficam como estão, e essa lei restritiva seja a que está em vigor. Se é isso (e parece-me ser, pelo que dizes a seguir), tu próprio/a(?) admites que a lei nunca foi eficaz. Diz-se que funcionou silenciosamente. Sim, tem por base um padrão de conduta e tem um efeito preventivo. Mas a verdade é que tudo parece indicar que a repressão penal não tem sido eficaz na dissuasão do aborto e, consequentemente, no combate ao aborto clandestino. E, muito sinceramente, instrumentalizar o direito penal para obrigar mulheres a ter filhos sem os desejar e sem condições, não me parece muito... humano. Seria mais humano ter uma estrutura de apoio para as acompanhar, perceber as suas razões, ajudá-las a encontrar outra solução e elas fazerem isso de acordo com a sua moral do que impor-lhes essa moral pelo Código Penal. A mim parece-me que só trazendo o aborto para a legalidade, só trazendo o problema à tona, se têm a abertura e a transparência para fazer face ao problema.

Disseste ainda que daqui a uns anos o aborto estaria banalizado, porque tornado num direito da mulher. Se percebo e partilho do primeiro medo (embora seja mais um estremecer do que um medo fundado, porque continuo a pensar que o aborto é um método demasiado complicado e doloroso para se tornar num contraceptivo banal), já não percebo bem a segunda parte. Um direito da mulher? Um direito equiparado ao direito à vida? Não. Quanto a isto não sei, mas ser legal não significa que é um direito. Há muitas coisas que são legais e não são direitos, são simples factualidades. Para ser direito teria de ser consagrado como tal, num qualquer diploma legal: "A mulher tem direito a abortar." E não creio que alguma vez venha a existir este direito, nestes termos, muito menos com protecção constitucional, como a que tutela o direito à vida.
Por fim, a tua sugestão da mera despenalização confunde-me um pouco, porque a pergunta que vai a referendo é se concordamos ou não com a despenalização da mulher que aborta no prazo e condições enunciadas. Votar não significa que não se concorda, logo não me parece possível votar não e defender a despenalização. Isso é o que têm feito alguns movimentos do não nestes últimos dias. Vital Moreira chama-lhe manobra de dispersão. Embora ele seja um "sim" activista e eu não, concordo com ele.

Príncipe Myshkin disse...

Respondi-te no meu blogue: comecei aqui a resposta, mas ela alongou-se para um tamanho insuportável para um mero comentário. Peço-te desculpa por ter feito da resposta um post: se quiseres que depois o retire, é só pedires. Acima de tudo, espero que possa constituir um diálogo interessante entre nós os dois, e desculpa-me os erros que tenha e a ignorância que o posso minar.

http://avarandaamarela.blogspot.com

António Pedro disse...

Rita:

Não sabia que tu e a Leonor tinham um blog!

Li o teu texto de uma ponta à outra; parabéns pela exposição e pela argumentação (bastante convincente, diga-se).

Btw: também tenho um blog (a Leonor conhece-o, aliás) onde já expus estes e outros argumentos para fundamentar a minha decisão de votar SIM neste referendo.

António (sim, o dos intermináveis casos práticos de Teoria Geral eheh)

rita disse...

João, já li o teu texto, que aproveito para, se não te importares, recomendar a todos os que gostam de ler coisas inteligentes. É que vale mesmo a pena!
Mas o meu comentário já lá está, por isso não vou repetir-me aqui.
Agradeço só, mais uma vez (já agradeci no comentário que te deixei) a sensibilidade e inteligência do teu texto, que me deu um prazer de ler que só me dão as coisas realmente boas. Obrigada! :)

António, descobriste o meu blog! Mas, ehrrr... pronto, confesso assim: já conhecia o teu. Pronto, já está. Podes deixar de falar comigo nos corredores da fac. E deixar de rir comigo cada vez que há um novo caso prático do coitado do António e do pobre do Belmiro. :) Ou então não: rir sozinha não tem piada!
Obrigada pelo comentário!
(Ah, já agora! Mandei-te uma mensagem, mas não deves ter visto... podias mandar-me para o mail os resumos das práticas da lavouras? É que neste momento odeio finanças com todo o meu ser e.... agh, acho que sabes do que estou a falar.)
beijo!

rita disse...

Aviso: a todos os que lêem este blog, os parentesis do último comentário são uma ilusão de óptica. Ninguém aqui pediu apontamentos a ninguém e ninguém aqui dá apontamentos a ninguém. Toda a gente estuda integralmente pelos calhamaços magníficos dos catedráticos! Por isso, não acreditem nesta ilusão de óptica. (E podem vir com os vossos euros que o António não vos vende os apontamentos!). Tenho dito!