sábado, fevereiro 10, 2007

A rotina

Acordou do lado errado da cama. E o seu estava vazio. Estremunhada, olhou para a mesa-de-cabeceira: 10h45m. Meus Deus! Estava atrasadíssima!
Saltou então da cama, maldisse o despertador, tomou um duche rápido, vestiu-se, bebeu café à pressa, lavou os dentes, pôs perfume e saiu de casa. Chegou tardíssimo à escola. E com uma nódoa de café bem imprópria. “Tenho de a trocar ao almoço”, pensou.
As duas primeiras aulas foram ao ar, obviamente trocadas por uma qualquer aula de substituição. Agora ainda tinha duas para dar, mas queria ver como justificava a falta. Simples: não justificava. Acordada já pelo café, desejou ter-se deixado adormecer mais duas horas… Pelo menos aproveitava o desleixo. Ai, ainda se eles gostassem de poesia…
As aulas correram muito mal. Devia ter tomado cinco cafés em vez de um, para acompanhar a pedalada dos miúdos. Pedalada, quer dizer, pedalada para a estupidez. Não sabia se era ela que estava a ficar velha, ou se era uma ideia feita, mas os miúdos pareciam-lhe cada vez mais insolentes e infantis.
Ao toque de saída da última aula, suspirou de alívio. E depois inspirou irritadamente, quando o relógio lhe disse que ainda só era hora de almoço. Que longo dia, que longo dia…
A caminho de casa ia tendo um acidente. Desta vez a culpa não era dela, a outra parva é que se meteu pela rotunda do lado errado e depois ia-se espetando em cima dela ao querer sair na terceira à direita. Imbecis. Conduz-se muito mal neste país… por sorte, não acontecera nada se não umas buzinadelas.
Em casa, era só ela para almoçar. O marido tinha um almoço de negócios com o sócio. O Francisco almoçava na escola e a Sofia ia almoçar em casa de uma amiga. Ok, almoçaria sozinha, então. Não tinha importância. Comia qualquer coisa. De qualquer modo, à tarde tinha uma reunião. Mais uma… Ainda havia uns restos no frigorífico.
Depois do almoço, fumou um cigarro, (ah, o primeiro do dia!) e só depois tomou café. Sim, fazia ao contrário de todos os fumadores: primeiro fumava, depois tomava o café. Os colegas implicavam com ela por causa disso e de todas as vezes ela resmungava que era assim que lhe sabia bem. Mesmo assim eles não se calavam.
Não chegou atrasada para a reunião e ainda teve tempo para outro cigarro. A este queimou-o depressa, deixando-lhe um beijo de insatisfação que se perdeu no cinzeiro.
A meio da reunião, telefonaram-lhe por causa do filho. Caíra numa aula de Educação Física e magoara o joelho. Foi com ele a correr às Urgências. Saiu de lá três horas depois, com uma entorse ligada na perna dele e, nela, uma irritação maldita contra o sistema de saúde do país.
Deixou o filho em casa e saiu a correr para ir buscar a filha a casa da amiga e levá-la ao ballet. Pelo caminho, e do banco de trás, aquela contou-lhe as peripécias todas do dia, incluindo a parte em que a Mariana lhe tinha dito que o papá dela é que era bom porque ganhava montes de dinheiro. Irritada, deu à filha uma qualquer resposta torta, de que logo se arrependeu quando lhe viu tremer o lábio inferior. Tentou remediar a situação com umas palavrinhas de consolo, mas o mal estava feito. A culpa comodamente instalada. “Logo a mamã vem buscar-te, sim querida?” A menina bateu com a porta, obviamente sem responder. E logo ali a culpa se transformou em revolta… com o país. Mas que raio de país é este?! Que estamos nós a fazer às nossas crianças?! Vêem televisão a mais, é o que é… e esquecem a poesia.
Entretanto o marido telefonou-lhe a pedir-lhe que fosse com ele comprar umas camisas. Há muito tempo que o seu marido não era seu marido… Teria outra? Ups, já estava. Foi só um breve segundo, menos, uns meros milésimos de segundo, mas o pensamento ali estava, automático e inquestionavelmente afirmativo. Agora, já racional: teria ele outra? Ou… ainda desejava ela ser sua mulher? Ultimamente, o seu corpo andava adormecido… mas o cansaço de ambos explicava tudo. “Sim, querido, vamos depois do jantar”.
Foi, então, buscar a filha ao ballet.
Chegara cinco minutos mais cedo. Estacionou o carro, desligou as luzes, o motor, puxou o travão de mão, tirou o cinto. Encostou-se para trás e pensou em descansar um bocadinho, enquanto a filha não vinha. A rádio tocava Maria Bethânia, “Agora não pergunto mais aonde vai a estrada. / Agora não espero mais aquela madrugada. / Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser, faca amolada.” Encostou o cotovelo na janela, deixou cair a testa sobre a mão e respirou fundo. Não foi preciso mais nada para as lágrimas caírem livremente.

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