domingo, maio 28, 2006

Humildade

"Para Cristo... sobe-se, descendo."

Uma das frases que sempre me intrigou mas que, compreendida, tem mesmo sentido. Na homilía de hoje o padre Carlos falou exactamente disto. De como podemos sempre subir mais e mais e mais para poder abrir os braços e partilharmos um abraço com Cristo. E como o conseguimos? Com a Humildade. A Humildade é muitas vezes entendida (mal, a meu ver) como o valor de quem se esconde, de quem se auto-diminui sempre, de quem se faz de "humildezinho" para alguém o valorizar. A Humildade é muito mais. Não é sinónimo de "coitadinho", nem antónimo de "todo inchado", "convencido", "empipado", "emproado". A Humildade é sermos nós. Com os defeitos e virtudes da pele que vestimos, do corpo e mente que somos. É sabermos qual é o nosso lugar no mundo consoante aquilos que vamos descobrindo em nós e explorarmo-nos ao máximo servindo os outros e fazendo outros felizes. Não é subindo atabalhoadamente, à custa do próximo, com pressa de "viver o momento", com medo de perder a oportunidade. É descendo ao nosso lugar, descobrindo-nos, aceitando-nos, libertando-nos dos medos que se colam à nossa pele, servindo e amando, que vamos escalando o caminho até Cristo.

Assim como Cristo subiu aos céus depois de ter descido à terra.

sábado, maio 20, 2006

Cinco minutos

Tenho cinco minutos para me lamentar.
Cinco minutos para lamentar as más escolhas que fiz: cinco minutos para lamentar a má gestão do meu tempo, cinco minutos para lamentar a má gestão das minhas capacidades, cinco minutos para lamentar as minhas incapacidades e o meu cansaço. Tenho estes cinco minutos para lamentar tudo o que me põe hoje tão nervosa, cinco minutos de eternidade para lamentar tudo o que me apetece. Posso ainda lamentar tudo aquilo que não fiz porque fui demasiado preguiçosa, porque me preocupei demasiado com o que os outros pensavam de mim, porque me foi mais fácil renunciar à minha vontade e ver simplesmente os outros fazê-lo, como mera observadora. Tenho cinco minutos para me lamentar de todos os bloqueios mentais e paranóias que por vezes, e como a todos nós, me deixam imobilizada numa lamentação idiota. Tenho cinco minutos, cinco inteirinhos minutos para me embrulhar numa profunda lamentação.
Depois desses cinco minutos, lavo a cara e enfrento o mundo com um sorriso e um outro olhar, bem mais positivo e gratificante. Arregaço as mangas e deito mãos à obra cheia de energia. Sem mais lamentações.

domingo, maio 14, 2006

outro olhar...

A Queima acabou. embora para muitos comece por ser um óptimo período de festas e não acabe assim tão bem, para mim foi mesmo boa.

Não ultrapassei limites e aproveitei para estar com pessoas que muito estimo. Estive com a minha querida irmã, dancei com quase todos os amigos (os que vejo todos os dias e os que quase nunca vejo), tracei a capa, vesti o traje quase todos os dias, andei com bolhas nos pés e fiquei com calos, ri-me imenso (talvez demasiado), consegui estudar qualquer coisita, descobri novas pessoas, vi professoras queridas de quem já sentia saudades, visitei a antiga escola... em suma, foi bom.

Agora volto aos estudos e à rotina. Ter uma semana de paragem soube bem e foi suficiente para estoirar mas também recarregar baterias.

A Queima bem vivida pode ser bem aproveitada. Para quem sabe dosear o fogo e o combustível ela pode ser, sem dúvida, uma grande festa. Sem Queimar ninguém.

Um olhar...

"E assim passou mais uma Queima das fitas pela cidade de Coimbra". Tenho pena que esta seja sinónimo de outras frases como "E assim passou mais um mar de cerveja que pôs os estudantes à deriva durante 8 dias pela cidade de Coimbra"; "E assim passou mais um período de pura loucura e abandono aos vícios pela cidade de Coimbra"; "E assim passou mais um período de enchimento embriagado do Hospital Universitário pela cidade de coimbra";

Cada vez mais a Queima queima Coimbra. Deteriora a imagem de tanto prestígio que, justa ou injustamente, perfuma a nossa Universidade. Deteriora a estudantada que cada vez mais vive para a Queima, se perde na Queima. Deteriora os organismos. Deixa Queimaduras a muita gente... que levou com um caco de vidro na perna e ficou com a cicratiz, que entrou em coma porque tinha de "ser da malta", que não se lembra como mas está grávida.

A Queima deixa-me a pensar. Pensar que cada vez menos se reconhece o limite nas coisas, que toda a gente ignora que a palavra liberdade é sinónimo de responsabilidade, que cada vez somos menos originais nos nossos divertimentos, que cada vez mais a malta jovem se enterra no que apetece, no que explode no momento, no que pede o "agora ou nunca" e esquece que há tanto mais para além disso. Tudo isto me entristece porque eu não sou mais velha. Não me ponho fora do quadro para o apreciar. Estou lá dentro. Entristece-me porque pouco posso fazer e não acredito em consciencializações, já que nesta idade a nossa consciência vai começando a estar formada, já começamos a saber o que queremos, ou, pelo menos, já a temos teimosamente dura para a querermos ou podermos moldar. E, assim, ir dançar para cima de um balcão de bebidas expondo o meu corpo e deixando que me toquem é consciente. Beber até cair é consciente. Atirar-me ao rio para fazer uma corrida com um amigo é consciente. Deixar-me ir no que ditam as hormonas e ficar com um filho nos braços é consciente.

Há quem diga que somos a "geração rasca". Eu cá acho que somos cada vez mais a "geração tasca".

terça-feira, maio 02, 2006

O cair do pano

Dediquei todo o meu tempo das duas últimas semanas (e, verdade seja dita, quase todo o meu tempo deste ano lectivo) ao teatro. Finalmente, após imensas dores de cabeça, o espectáculo ficou pronto e foi apresentado, ao longo desta semana, ao público. Das duas cenas que mais me marcaram (e não, eu não estou em nenhuma delas!:)), há uma que mexeu particularmente comigo. É uma cena em que cinco fuzilados lêem as suas cartas de despedida.
O cair do pano chegou, para a minha avó, há pouco mais de dois anos. Dela guardo poucas memórias. O que mais sinto é uma culpa vaga, um quase arrependimento, ou talvez uma saudade estranha por ter vivido sempre na distância. As saudades que sinto – esta espécie de saudade – não são dela, mas sim de não ter crescido perto dela e de só ter estado presente na velhice e na doença.
O momento mais feliz vivemo-lo à entrada daquela casa velha, a meio caminho entre a porta e a eira de secar o milho. Que idade teríamos, eu e a minha irmã? Só me lembro do sorriso rasgado da minha avó e de lhe ver nos olhos pretos umas rugas doces e felizes. Ela estava sentada com uma manta sobre as pernas, mas a mão segurava ainda com alguma firmeza a raquete de praia e ela jogava como podia aquele jogo pateta com as netinhas. A bola raras vezes estava no ar, mas nós riamos as três e a minha avó levava a mão direita à cabeça, sempre a rir, e desfazia-se no seu amor por nós, sentindo-se tão próxima das netas, jogando os seus jogos e rindo com elas… Tenho a certeza de que nessa tarde a minha avó correu connosco pela eira, pelo quintal, pela vila inteira! – Talvez até tenha voado.
Sei pouco sobre a sua vida, que pressinto muito sofrida, solitária e cheia de repressões. O meu avó, que com a velhice se tornou mais meigo e brincalhão, foi, decerto, um rígido pai de família. Do pouco que sei, a minha avó nunca trabalhou. Cuidava dos filhos e da casa. Imagino-a sempre entre quatro paredes, sem ar. E com grades na janela.
Curiosamente lembro-me da voz e do riso. Ouço-os, ainda, na minha cabeça, como peças de um puzzle que, pouco a pouco, vou reconstruindo.
Da sua doença lembro-me bem. Mas essa prefiro não recordar, não sei se porque me é doloroso, se por pudor, ou simplesmente porque prefiro lembrar-me sempre dela sentada com a manta sobre as pernas a rir com as netas. Claro que me lembro da degradação do corpo até aos limites do que é ser-se humano, mas já há demasiado sensacionalismo nas imagens que correm todos os dias e os destroços e desastres tornaram-se tão banais que já não nos tocam a maioria das vezes. Defende-se o corpo, e as lágrimas já não escorrem da alma tão facilmente.
Ouço a carta de fuzilada de uma menina de 17 anos e meio e penso em mim, mas penso também na minha avó, que toda a sua vida foi prisioneira. Penso nessa menina que morreu, algures, sem alcançar a maioridade sequer, e penso na minha avó, que chegou à terceira idade e sofreu no corpo e na cabeça o peso de uma doença devastadora. Penso em mim, também, nos meus amigos e no mundo de liberdades em que hoje vivemos. Penso nas nossas prisões, nos nossos conflitos, nas nossas barreiras e nas nossas ilusões de imortalidade. Penso no que será saber-se que se vai morrer passadas umas horas, penso no que é saber-se que se vai morrer a qualquer momento. Penso no que será já nem se aperceber de que se está vivo, não se aperceber de que se vai morrer.
Eu não me despedi da minha avó, mas ficarei para sempre agradecida por termos almoçado todos com ela no primeiro dia de uma ano que acabara de começar. Não me lembro de pormenores. Na verdade, só me lembro do olhar vazio da minha avó, do seu silêncio. Ela já não tinha consciência de nada.
A minha avó não nos escreveu nenhuma carta, mas já todos sabíamos que não faltava muito para o cair do pano. Fiquei triste, mas aliviada, quando os meus pais me contaram que a avó Ana tinha morrido, no dia 2 de Janeiro. E eu não pude deixar de pensar “Ainda bem que fomos lá ontem.”