quarta-feira, março 28, 2007

O lirismo é uma espécie de doença crónica

O lirismo é uma espécie de doença crónica, instalada no ventrículo esquerdo, incrustada numa qualquer membrana de que não sei o nome porque não estudo medicina. O lirismo é uma praga, uma chaga que arde constantemente e cujo principal sintoma é a compaixão. O estado lírico é um estado gelatinoso, uma ligeira impressão no peito, que se manifesta sob o som interno “baque” e deixa o paciente numa disposição melancólica e nostálgica. Episódios deste tipo são frequentes em doentes líricos em situações de alguma carga emocional. É muito frequente, por exemplo, entrar neste estado emocional quando se encontra um velhinho ou uma velhinha na paragem de autocarro e se ouve a narração breve (ou não tão breve assim) da história de uma vida inteira. Ou quando o mesmo velhinho ou velhinha não conseguem subir para o autocarro e precisam de uma mãozinha. Muitíssimo comuns são também manifestações líricas sob a forma de sorriso rasgado ou mesmo uns sons do estilo “ohhhhh” na presença de crianças e bebés, afectando esta forma de lirismo mais o género feminino do que o masculino. O contacto com a natureza e o ar puro tem o mesmo efeito em doentes líricos, causando invariavelmente um momentâneo estado depressivo quando os sintomas físicos alteram os químicos no cérebro e os pensamentos dos indivíduos.

Não se conhece nenhuma cura para esta espécie de doença crónica. Há quem diga que não há mesmo possibilidade de cura e que a única maneira de sublimar esta condição é através da arte, qualquer que seja a sua forma. Claro que a arte de viver não conta, porque é a principal causa desta eterna condição lírica.

5 comentários:

Anónimo disse...

Fogo! Estou aqui na sala internet da universidade a bater palmas (eles olham mal para mi, porque?)!
è mesmo bom ter finalmente tempo para te ler novamente, Rita! E deste teu ultimo esforço lirico gostai em maneira particular: continua assim, que esta nao è uma doença tao grave (pelo menos, eu gosto-a :^D).

Um beijao!

Ale

rita disse...

Ale!
Obrigada! :)
Felizmente sei que há mais líricos crónicos como eu. :)
beijo!

Anónimo disse...

Tens que me dizer onde é o teu consultório...Parece-me que bates o dr.House em certo tipo de diagnósticos:) Gostei muito, Rita. Tu vais longe...abraço da Bia

Príncipe Myshkin disse...

"Tu vais longe." - Subescrevo.

"O estado lírico é um estado gelatinoso, uma ligeira impressão no peito" - é para se poder ler coisas destas que, em última análise, andamos sempre a ler livros: há espera de um escritor que nos escreva assim, com esta maravilhosa sensibilidade, ligeireza precisa e ironia contida. Adoro simplesmente esta descrição.
Todo o texto é, de resto, muito bom, como penso que, doravante, sob pena de me tornar repetitivo, deixarei de dizer em comentando o que escreves. Mais uma vez, há aquele volte-face no final, em que transformas o objecto do teu pensamento num pensamento sobre o objecto mais geral e total que é a vida.
Penso que devo confessar que me parece que a autora deste texto sofre da mesma doença que relata. Só para o caso de ela não se ter apercebido, mas julgo não se passar isso. Viva os líricos!

rita disse...

Obrigada Bia e obrigada João! (mas o dr. house é o dr. house... e eu sou só eu eheh!)

Viva os líricos!!! (mais uma vez, será que não podemos formar um clube ou qualquer coisa assim?)