Eu era muito nova e ele tinha o charme de ser mais velho. Eu era muito nova e não sabia nada da vida e no olhar dele lia uma espécie de sabedoria tranquila. Eram duas avelãs, os olhos dele, bem escuros, bem lindos, bem profundos. Fitavam-me como dois faróis, invadiam-me a intimidade e deixavam-me nua, desprotegida, sem jeito. Ele tinha o charme de ser mais velho, tinha o charme no sorriso, em toda a boca, no sinal no queixo, no nariz torto, na barba por fazer… e tinha ainda o charme de me ouvir no meu embaraço e de me fazer sorrir, sorrir por dentro, rir por fora, tolinha. Ele tinha tudo, tudo… Eu era muito nova e ele tinha esse charme de ser homem.
Como nos conhecemos? Não importa. Na sua contingência, as histórias de amor são todas iguais. Há o momento do encontro, da atracção, do enamoramento, da paixão, do desejo… a ordem é mais ou menos indiferente, não há ordem no caos do amor. Às vezes é tudo ao mesmo tempo, outras vezes são parcelas de todos esses momentos, misturadas como peças de um puzzle em construção.
Conhecemo-nos num concerto, através de um amigo comum. Talvez importe, afinal – quem sabe? Há em todas as coisas a possibilidade infinita de ser uma infinidade de coisas. Talvez tivesse sido diferente se nos tivéssemos conhecido num bar. Ou no cinema. Ou na faculdade. Ou num outro lugar qualquer. “Olá, a tua cara não me é estranha. Conheço-te de algum lado?” Mas não foi assim.
Aconteceu tudo tão depressa… Eu flutuava, flutuava, vivia à beira de um precipício encantado onde o desejo e o risco se entrelaçavam. Era uma sinfonia, uma sinfonia! Uma sinfonia de sensações dispersas, de sentimentos de diferentes tonalidades e no fim, oh no fim, tudo se conjugava na mais bela música que já sentira dentro de mim. Êxtase, êxtase, e o ciúme, e o ciúme… A admiração babada daquele ser caído dos céus, as mãos, as suas mãos hábeis, os dedos lindos que imaginava em carícias, as mãos perfeitas e mágicas que faziam ilusionismo diante dos meus olhos… a vertigem da proximidade… o abismo da distância… a adoração…
O fim. Apaixonou-se – disse com a maior das latas – por outra rapariga. Estava completamente apaixonado por ela e eu a olhar para ele e já não havia mais ninguém. Eu olhava para ele e ela desaparecia quando ele olhava para mim, eclipsava-se quando conversávamos, morria quando ele me tocava ao de leve no braço. Mas ele agora tinha namorada. E eu odiei-os. E pensei que morria.
Não fui a única. Havia mais alguém que chorava o que eu chorava, que sentia o que eu sentia. Alguém que, como eu, recolhia os cacos do desgosto para debaixo do tapete do amor e aguardava em sofrimento que passasse o tempo, que passasse o luto. Mas ele tinha acrescido o peso do preconceito, o grilhão da sociedade e as suas lágrimas eram reprimidas. E o meu amigo chorava comigo a perda do mesmo homem. E eu era muito nova e ele não era assim tão novo e ambos chorávamos a perda de um homem mais velho. Estranhamente, encontrámos algum conforto no sofrimento mútuo, no carinho mútuo e fraternal. E ele disse-me: “Sabes Sofia, se eu fosse heterossexual, ficava contigo”. E eu disse-lhe “e eu, se fosse homem e homossexual, ficava contigo”. E rimos os dois feitos parvos, entre lágrimas salgadas e lágrimas perdidas. C’est dommage. Mas a vida continua.
2 comentários:
(A.S. [Ante Scriptum]: a propósito apenas da premissa inicial, a diferença de idades, não posso deixar de ver nela um pretexto barato para recomendar o visionamento de "Missed Me", dos Dresden Dolls [http://www.youtube.com/watch?v=gUEP-VKK-x4]: nota, além da letra, o teatro do Brian na bateria)
O título, nem que seja pelo sub-contexto sexual implícito, é delicioso (eu tenho um prazer especial nestas alusões veladas, nestas brincadeiras entre o inteligente e o libidinoso puro). Os primeiros parágrafos, mais até do que a parte final, talvez demasiado rápido-breve na introdução do outro personagem; os primeiros parágrafos dizia, na descrição do amor como caos estão originalmente concebidos e praticaram em mim a acunpultura do prazer estético: pequenos beliscões de arte. Parece-me só que essa pedalada não vai até o fim (ainda que este recupere um pouco, pela sua ironia e finalíssimo agridoce), muito por culpa de uma certa pressa que pressinto. Entende isto não como uma crítica, apenas como uma opinião, talvez sem valor, de alguém que, ao longo desta tarde, tem vindo a ler os mais variados textos teus, senhora escritora.
The dresden dolls, "brechtian punk cabaret"... (e o pânico deles de serem rotulados como góticos! ah, é tão engraçado este medo dos rótulos, este medo terrível de classificações... o site deles é genial, genial mesmo) percebo porque consideras a melhor banda punk rock do momento. A música é simplesmente genial, mas a diferença de idades de que fala é bem diferente... é mais como se a Lolita falasse para o Humbert Humbert ou algo do género... gosto do som, ela tem uma voz fantástica e os dois têm uma presença incrível em palco. O início da música é delicioso. Gostei!
Em relação ao texto, fico feliz que tenhas gostado. Normalmente não falo como me lembro das coisas que escrevo, mas esta ideia surgiu-me assim de repente, já formada e escrevi-a assim, depressa, num jorro. O título, ao contrário do que costuma acontecer, foi das primeiras coisas de que me lembrei. Espero que isto não seja imodéstia a mais, mas eu também gosto do título. Também acho piada a esses trocadilhos marotos. :)
Percebo o que queres dizer quando dizes que o fim é demasiado apressado. Acho até que tens razão, e eu nem explorei muito a terceira personagem, nem a maneira como afectou a rapariga o facto de o rapaz por quem estava apaixonada se ter apaixonado por outra. Não sei, não me apeteceu alongar-me muito nessa parte e também acho que quis dar a ideia de corte repentino, de choque (se o consegui isso já é outra questão...) Quanto à terceira personagem, é uma personagem que me fascina, apesar do pouco destaque que tem. Talvez seja pretensioso eu estar aqui a discorrer sobre um texto que eu própria escrevi (espero que não), mas agora que penso nisto estou a lembrar-me que afinal o facto de a personagem homossexual ter pouco relevo é uma boa metáfora para o que acontece na vida real. Continua tabu, continua, em tanto sítio e entre tantas pessoas, a ser considerado menos digno do que a heterossexualidade, começa a falar-se mas sempre com grande escândalo, até por parte dos homossexuais, que vão para programas como o da Oprah falar sobre as suas experiências e como descobriram que eram homossexuais. Eu acho muito positivo que se fale sobre as coisas, mas enquanto se falar em tom de escândalo, enquanto se puser grande tónica na diferença que é tão simplesmente isso, uma diferença, pessoas como a personagem de que falamos continuarão a sofrer desgostos amororos socialmente menos dignos do que pessoas como a personagem Sofia.
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