terça-feira, outubro 24, 2006

O lado bonito das pessoas

O pessoal do teatro faz coisas muito esquisitas. Há quem diga que são todos uns freaks e que cheiram mal e que se enrolam nas próprias mortalhas, perdendo-se na vida. Não sei se encaixo nalguma parte deste perfil estereotipado – provavelmente cheiro mal.
Independentemente do estereótipo, sou uma apaixonada pelo teatro. E uma das (muitas) coisas boas do teatro universitário é que é um lugar fantástico para encontrar pessoas muito diferentes. Não só encontrar, mas sim, e sobretudo, conhecê-las com uma profundidade que é difícil na vida frenética do dia-a-dia.
Tenho muitas vezes a sensação que visto de fora isto do teatro é muito esquisito, como esquisitas parecem as coisas que fazemos. Há, por exemplo, um exercício de contacto muito simples; básico, na verdade, para explorar aspectos relacionados com a interacção dos actores, com a cena e contracena: duas pessoas sentam-se uma à frente da outra e olham-se nos olhos. Numa primeira fase, concentram-se apenas em encontrar aspectos desagradáveis na cara da pessoa em frente. Numa segunda fase, ambas as pessoas se concentram unicamente em descobrir aspectos agradáveis na outra.
Aparentemente palerma, este exercício conseguiu pôr-me a pensar em coisas bem para lá da cena e contracena. Porque o teatro só me interessa porque me interessa a vida e porque me interessam as pessoas. E não faz sentido sem isso.
Participando neste exercício, foi muito interessante perceber de que maneira a predisposição com que olhamos para o outro altera realmente (até certo ponto, é certo) aquilo que sentimos por ele: se realçarmos os aspectos desagradáveis ou inestéticos, sentimos uma certa repulsa, uma irritação, um desejo de distância. Por outro lado, se repararmos nos aspectos agradáveis, sentimos uma espécie de pequena euforia, uma sensação de bem-estar e de afecto pelo outro.
Visto de fora, foi verdadeiramente engraçado ver as caras das pessoas nas duas fases do exercício. Na primeira, os rostos estavam fechados em si, sérios e enrugados, agressivos. Na segunda fase, as caras estavam sorridentes (as pessoas começaram mesmo a sorrir! Com os olhos, com a boca, com o nariz!), descontraídas, abertas.

Mais tarde, de mansinho e quase sem me aperceber, transpus isto para o meu dia-a-dia. E fui-me apercebendo por que é que há dias em que é fácil e agradável a interacção com os outros, e dias em que é difícil e dolorosa, para nós e para eles.
Se olharmos para os outros focando-nos no que eles têm de agradável, não só sentimos imediatamente mais prazer em conviver com eles, como toda a nossa expressão muda, tornando-se também ela mais agradável e receptiva aos outros. Pelo contrário, naqueles dias de impossível mau humor, em que só vemos aquele lábio irritante e aquele nariz horrível, sentimos repulsa pelo outro, pelo que os nossos sinais vão ser negativos, estaremos mais fechados, mais agressivos, mais enrugados e sérios.
Obviamente, há toda uma imensidão de coisas, para além destas, que influenciam as nossas relações com o outro, e essas não as alcanço através de um mero exercício despretensioso como este. Mas não desvalorizo o que aprendi com ele. E, por isso, quando sinto que estou com menos paciência para as pessoas (ou seja, que estou mais centrada nas minhas umbiguices do que atenta às umbiguices dos outros), procuro fazer um esforço por olhar para os traços agradáveis daqueles com quem convivo. Tento observá-los pelo canto do olho (porque na nossa sociedade é difícil olhá-las durante muito tempo e com a atenção devida) e captar o que de belo existe neles. Foco com foco sincero aquele sorriso que me cativa e assim vou buscando um qualquer lado bonito das pessoas – até o feio.

segunda-feira, outubro 23, 2006

desdobrando um trocadilho :)

Gostava de me desdobrar.
Abrir o meu leque.
Desdobrar as dobras
bem dobradinhas
apertadas umas
contra as
outras.
Desdobrar as dobras
e mostrar o desenho
dobradinho,
enlequezado,
com o colorido preservado pela falta de
sol.
Gostava de me desdobrar.
Abanar freneticamente
caras
ainda que não suadas.
Especialmente as
não suadas.
Como gostava, aliás,
de me desdobrar
de as abanar
de as fazer suar
ainda que pela primeira vez
e por uma só vez.
Talvez mais duas para dar três.
Gostava de me desdobrar.
De tocar muitas brisas
com
as minhas muitas dobras.
De absover muitas fragrâncias
no tecido enlequezado
virgenzinho
e preservado.
Gostava de me desdobrar
e continuo dobradinha
do-bra-da nas minhas dobras
bra-da(n)-do nas minhas dobras
a vontade de sair
da-do-bra de mim.
que desvario desvairado : )

segunda-feira, outubro 16, 2006

A deambulação dos pensamentos

Hoje os meus pensamentos saíram à rua
Abraçados uns nos outros num emaranhado confuso.
Desceram a avenida do meu sentir
Como quem desce uma montanha: assustados.
Sem trela, sem rota e sem mim,
Foram andando à chuva
Até que regressaram ao meu corpo
Completamente encharcados,
Pequeninos, entrelaçados
E perdidos.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Espelhos e mocassins

Sempre me entristeceu a incapacidade da maioria das pessoas de se colocar na pele de outras. Há um provérbio nativo-americano que expressa bem a importância de imaginar que se é o outro: nunca conseguirás compreender uma pessoa a não ser que dês uns passos nos seus mocassins.

Gosto deste provérbio, gosto desta maneira de pensar. Sinto que é uma forma nobre de tentar conhecer o que habita a pessoa que queremos conhecer, se não a única maneira. Só tentando recriar o seu espaço interior com aquilo que vamos descobrindo acerca dela e através da nossa intuição, conseguimos pressupor o que a faz ser como é e ter as características que tem. Em suma, só calçando os seus sapatos e imaginando o seu interior conseguimos compreender os seus comportamentos, perceber as suas motivações, vê-la como um (quase) todo – ainda que não partilhemos nenhuma das suas ideias, ainda que não tenhamos nada em comum.

Talvez por isto, cansam-me as pessoas que não conseguem pôr-se no lugar de outras. E cansam-me as pessoas que, de tão cheias de si e dos seus umbigos, são incapazes de sequer se aperceber que em frente delas está alguém, com os seus mocassins, com as suas histórias, com as suas conquistas, com as suas frustrações, com as suas pedras e com todas as coisas que compõem uma pessoa. Irritam-me as pessoas que não vêem mais ninguém para além delas próprias, que olham para as outras como se olhassem para um espelho, que se enchem de orgulho de si e vivem atoladas no seu umbigo.

E tenho um medo de morte de um dia olhar para mim e descobrir que sou assim.

terça-feira, outubro 03, 2006

E a tradição repete-se...

Capas aos ombros, pastas na mão, grandes manchas negras de estudantes praxam caloiros. As mesmas canções, as mesmas brincadeiras, os mesmo gritos, as mesmas maneiras de "acolher" os estudantes que entram agora na Universidade. A alta da cidade enche-se de sons e movimentos, de cerveja, traçadinho e muitas bocas sequiosas são pela primeira vez apresentadas à arte de bem beber. E rastejar.

Os morcegos mais fanáticos já têm os seus caloiros e quem sou eu para julgar as suas escolhas? Gostava de conseguir olhar para a praxe com magnífica simplicidade, mas não consigo. É-me impossível olhá-la de um só lado… Vejo um misto de várias coisas: relaçõezinhas de poder e de afirmação do eu num grupo (ainda que o grupo seja gigantesco e gigantescamente hierárquico); espécie de ritual de entrada em que é quase inevitável desaguar; conservação da tradição (a todo o custo?...); iniciação genuína ao espírito boémio da vida académica da cidade; alguma interacção entre os caloiros… e depois vejo sempre um lado divertido e um lado abusivo (e por isso polémico), que depende sobretudo de que lado se está: divertido se se está do lado dos doutores, abusivo se se está do lado dos caloiros. E mesmo assim ainda depende.

A sensação de que já não nos podem tocar é estranha. Porque é um não poder ao mesmo tempo desinteressado e distante (não querer?). Quase como se a praxe fosse uma espécie de uma redoma em que os caloiros caem, uma redoma com muitos espinhos, é certo, mas que deixa de existir assim que os caloiros deixam de ser caloiros. Como se os doutos doutores fossem plenamente independentes e auto-suficientes (e não são, ninguém é…). E como se deixassem de ser motivo de interesse por parte dos estudantes mais velhos assim que ganham autoridade para praxar.

Não estou a condenar a praxe. Também não a exalto. Mas às vezes dou por mim a imaginar o que teria sido e seria agora diferente se tivesse ido para um ensino superior sem praxe. Seria melhor? Seria pior? É absurdo perguntar isto, mas a verdade é que continuo a ter a visão turva em relação à praxe. Não acho que seja “maçã com bicho”, como reza a canção de Sérgio Godinho, mas também não lhe acho assim tanta graça (é que “há quem ache [muita] graça à praxe”).

O mais interessante é que, (e posso estar completamente enganada, mas é um risco que todos corremos a toda a hora), não me seria estranho se houvesse maneira de concluir que grande parte dos estudantes que passam pela Universidade de Coimbra são relativamente indiferentes à praxe: isto é, entre a minoria de fanáticos e a minoria de antis, há uma grande gama de pessoas que se sujeitam a ela, que a fazem, que a vivem mais ou menos intensamente, mas com um sentimento geral de relativa displicência. E é assim que a tradição continua, e é assim que a tradição se repete… pelas nossas mãos.