Da porta entreaberta da cozinha vejo a cena toda: sentado à mesa, com a careca reluzente a olhar para cima e um babete enorme preso ao peito qual medalha de honra, o meu velhote rói com os quatro dentes o pedaço de batata preso ao garfo. A velhota ciranda pela cozinha, tão freneticamente quanto lho permite a idade, agarrada à travessa já vazia do peixe. O talher chocalha ruidosamente na travessa e o meu avô mastiga caturrices à minha avó. Ela responde. À letra. Ele retorque. Ela barafusta e entram os dois numa desgarrada de casmurrices! Quase parece uma sinfonia estridente de palermices que a razão da idade já desconhece!
De pé estão os meus pais, calados, num silêncio cúmplice e matreiro. Os velhotes continuam o diálogo sem suspeitar da troca de olhares do casal. E eu vejo essa troca e também calo um riso matreiro, porque também do meu posto há um distanciamento que me deixa ter um laivo de ironia.
E quando for eu a calar um sorriso cúmplice aos diálogos caturras dos meus pais? E quando um filho meu registar a cena toda da porta entreaberta da cozinha?...
2 comentários:
Texto muito bonito. Para além de muito bem descrito (e comicamente!), criando mesmo uma porta entreaberta no tempo para o próprio leitor, a cena é, em si, nostálgica e a imagem completa a viagem perfeitamente. E quem sabe que acontecerá, sim, quando rompermos o encantamento do Peter Pan e crescermos? Francamente,um texto de surpreendente beleza e reflexão.
Também gosto muito de spreitar com bom carinho os discursos dos meus avos. Gosto ver estas cenas, tentando de imaginar-me mesmo velho e com filhos a olhar para mim. Sao observaçao que sempre ensinam-me muito, e ajuda-me a construir o meu (ainda inicial) ser adulto.
Estou feliz para as relaçoes, a barba, as rugas e tudo o que me diz que estou a amadurecer (escreve-se assim? :-)
Além disso, continuo a acreditar cada dia que se possa voar sem chamar-se Peter Pan! Ainda està possivel! :-D
Um beijao!
Ale
(P.S. Ainda duas semanas de exames e depois vou escrever-te seriamente! Tchau!)
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