sábado, setembro 16, 2006

carta

Recebi-a e sentei-me. As minhas pernas falharam-me naquele momento em que devia ter ficado firme e fingir-me segura. Mas estava só. Não me ralei. Fechei os olhos e mantive-os assim, bem fechados, com força, ao ponto de as pestanas de cima e as de baixo se colarem, misturarem e confundirem. Sentia o papel liso, escorregadio, lustrado, macio, nas mãos. Tinha uma vontade louca de abrir o envelope, uma curiosidade que me esmagava e me abandonava algures entre o querer saber e o preferir almofadar-me na ignorância. Percorri com os dedos a fina incógnita... sim, era fina. O envelope não era gordo nem recheado. De certo modo, até era como ele. Ele também não era gordo nem recheado. Era fino, oco por dentro, sem nada que o enchesse, sem nada que lhe pesasse, que o fizesse pesar. Passava despercebido. Só me apaixonei por ele porque o destino mo apresentou e pediu que o abrisse... Nunca o fiz. Casámo-nos mas nunca o abri, talvez com medo de descobrir o vazio que o enchia. Assim como este envelope. Também me passaria despercebido se a D.Lucinda não mo tivesse trazido com um brilho especial na cara e um estranho desenho de olhos. O que me chamou à atenção foi aquele canto do envelope. Aquele cantinho superior direito dobrado. Era uma mania dele! Muito embirrei eu com aqueles cantinhos dobrados que encontrava nos livros, nos jornais, nas revistas, nos panfletos. "Para marcar o que me marca!" repetia ele em resposta, primeiro com palavras, depois só com os olhos e, por fim, com o desprezo. Eu nunca me cansei de lho repetir. Primeiro docemente, depois agressivamente, depois saturadamente e, por fim, cansada. No escuro desenham-se as memórias mais facilmente. Abri os olhos. Era a letra dele. Inclinada para a direita, quase deitada sobre o papel, como se alguém a tivesse soprado ou ela estivesse apenas já cansada, a letra desenhava o meu nome, a noss..minha morada, o nome dele, sem morada. O selo estava torto. Sem dar por isso, abri o envelope. Tirei a carta mas não a abri. Saboreei os últimos momentos que viveria na ansiedade de não saber onde o encontrar, dos anos que passei na angústia amarga do abandono, dos anos que passei sem me conseguir libertar da nossa rotina, dos anos que passei a tentar convencer-me de que voltarias. Finalmente, teria uma resposta. Desdobrei o papel e ela caiu para o chão e rolou, fina, dourada, reflectindo os finos raios de sol que se atreveram a tocar-lhe, desenrolando e abandonando no chão as memórias que carregava, bateu no tapete e parou em quina, para eu a ver bem. O papel estava em branco... o canto superior direito estava dobrado. Não consegui evitar que uma lágrima fina como a aliança que agora me devolvias rolasse também pela minha pele. Pela primeira vez em 11 anos, chorei.

1 comentário:

Anónimo disse...

Como é possível que ninguém tenha comentado este? está brilhante! uma mistura de dramaticidade com a tua maneira poética de escrever! escreve mais!