quarta-feira, setembro 27, 2006

Impressão

Às vezes tenho a sensação de que me rodeio de pessoas, de que me envolvo em mil projectos, de que corro sempre de uma lado para o outro porque se parar esbarro de frente com a minha solidão.

Um palco só (ou dezasseis anos)

O nosso palco tem soalho de madeira que range constantemente pelos passos das pessoas que lá passam. Às vezes nem parece ser o nosso palco, porque olhamos e olhamos e olhamos em volta e só vemos caras de pessoas que já se cruzaram connosco em algum ponto da nossa curta vida. Está sempre cheio de gente, gente diferente que nos vai preenchendo recantos diferentes do que preenche uma pessoa. Imagino que estejamos lá no meio, mas a multidão que nos rodeia não deixa que a plateia nos veja na nossa individualidade.

Deslocamo-nos regularmente até aos limites do nosso palco, batendo com a cabeça no limiar da porta de entrada de cada vez que nos aventuramos de mais. A peça que representamos não tem ensaios, mas também não tem guião nem sentido nem rumo nem norte. Não há personagens definidas e a personagem principal ficou nos bastidores a chorar o medo das luzes da ribalta. Andamos às voltas pelo palco, andando, correndo, saltando, sempre com pessoas, sempre com caras, tantas quantas forem precisas para não nos lembrarmos de nós. Já esquecemos o barulho do silêncio porque o nosso palco nunca está vazio e o soalho nunca pára de ranger. Não sabemos o que é estar parado porque nunca nos damos espaço para estar sem as pessoas. Acho que temos medo de que não gostem de nós ou de que não sejamos importantes.

Não sei ao certo se a cortina está fechada se aberta. Talvez esteja aparentemente aberta e talvez as pessoas circulem pelo nosso palco livremente, ou talvez na verdade esteja tão fechada que não é no meio do palco que elas andam mas sim à boca de cena.

Olhamos e olhamos e olhamos e não nos vemos. Estaremos mesmo cá? Faremos parte do nosso próprio palco? Ou seremos como o actor principal com medo da ribalta?

Não sabemos. Às vezes é tudo muito confuso, como se as nossas cabeças ficassem cheias de um barulho mental impossível de aturar. Outras vezes até nos sentimos bem, como se estivéssemos no topo de uma montanha e tudo nos fosse possível.

Temos uma necessidade incontrolável de conversar. É por isso que gostamos de ter longas conversas com os amigos. É uma maneira de nos libertarmos de algumas angústias e também de esquecermos por momentos o barulho do nosso pensamento.

Mas no fundo estamos só a conhecer o nosso palco, este palco que pisamos, e a aproveitar a vida enquanto não crescemos e ficamos sérios de mais. Vivemos o momento e às vezes pensamos no futuro. Mas não muito, porque somos jovens e porque temos toda a vida à nossa frente.

sábado, setembro 16, 2006

carta

Recebi-a e sentei-me. As minhas pernas falharam-me naquele momento em que devia ter ficado firme e fingir-me segura. Mas estava só. Não me ralei. Fechei os olhos e mantive-os assim, bem fechados, com força, ao ponto de as pestanas de cima e as de baixo se colarem, misturarem e confundirem. Sentia o papel liso, escorregadio, lustrado, macio, nas mãos. Tinha uma vontade louca de abrir o envelope, uma curiosidade que me esmagava e me abandonava algures entre o querer saber e o preferir almofadar-me na ignorância. Percorri com os dedos a fina incógnita... sim, era fina. O envelope não era gordo nem recheado. De certo modo, até era como ele. Ele também não era gordo nem recheado. Era fino, oco por dentro, sem nada que o enchesse, sem nada que lhe pesasse, que o fizesse pesar. Passava despercebido. Só me apaixonei por ele porque o destino mo apresentou e pediu que o abrisse... Nunca o fiz. Casámo-nos mas nunca o abri, talvez com medo de descobrir o vazio que o enchia. Assim como este envelope. Também me passaria despercebido se a D.Lucinda não mo tivesse trazido com um brilho especial na cara e um estranho desenho de olhos. O que me chamou à atenção foi aquele canto do envelope. Aquele cantinho superior direito dobrado. Era uma mania dele! Muito embirrei eu com aqueles cantinhos dobrados que encontrava nos livros, nos jornais, nas revistas, nos panfletos. "Para marcar o que me marca!" repetia ele em resposta, primeiro com palavras, depois só com os olhos e, por fim, com o desprezo. Eu nunca me cansei de lho repetir. Primeiro docemente, depois agressivamente, depois saturadamente e, por fim, cansada. No escuro desenham-se as memórias mais facilmente. Abri os olhos. Era a letra dele. Inclinada para a direita, quase deitada sobre o papel, como se alguém a tivesse soprado ou ela estivesse apenas já cansada, a letra desenhava o meu nome, a noss..minha morada, o nome dele, sem morada. O selo estava torto. Sem dar por isso, abri o envelope. Tirei a carta mas não a abri. Saboreei os últimos momentos que viveria na ansiedade de não saber onde o encontrar, dos anos que passei na angústia amarga do abandono, dos anos que passei sem me conseguir libertar da nossa rotina, dos anos que passei a tentar convencer-me de que voltarias. Finalmente, teria uma resposta. Desdobrei o papel e ela caiu para o chão e rolou, fina, dourada, reflectindo os finos raios de sol que se atreveram a tocar-lhe, desenrolando e abandonando no chão as memórias que carregava, bateu no tapete e parou em quina, para eu a ver bem. O papel estava em branco... o canto superior direito estava dobrado. Não consegui evitar que uma lágrima fina como a aliança que agora me devolvias rolasse também pela minha pele. Pela primeira vez em 11 anos, chorei.

sábado, setembro 09, 2006

Porta entreaberta para o tempo

Da porta entreaberta da cozinha vejo a cena toda: sentado à mesa, com a careca reluzente a olhar para cima e um babete enorme preso ao peito qual medalha de honra, o meu velhote rói com os quatro dentes o pedaço de batata preso ao garfo. A velhota ciranda pela cozinha, tão freneticamente quanto lho permite a idade, agarrada à travessa já vazia do peixe. O talher chocalha ruidosamente na travessa e o meu avô mastiga caturrices à minha avó. Ela responde. À letra. Ele retorque. Ela barafusta e entram os dois numa desgarrada de casmurrices! Quase parece uma sinfonia estridente de palermices que a razão da idade já desconhece!

De pé estão os meus pais, calados, num silêncio cúmplice e matreiro. Os velhotes continuam o diálogo sem suspeitar da troca de olhares do casal. E eu vejo essa troca e também calo um riso matreiro, porque também do meu posto há um distanciamento que me deixa ter um laivo de ironia.

E quando for eu a calar um sorriso cúmplice aos diálogos caturras dos meus pais? E quando um filho meu registar a cena toda da porta entreaberta da cozinha?...

quarta-feira, setembro 06, 2006

Histórias que fascinam.

Há histórias de Santos que nos fazem pensar. Algumas deixam-nos a pensar se alguma vez alguém pôde realmente ter sido tão bom, tão completo, tão generoso, que se tenha tornado santo, ou seja, um exemplo de fé e de vida para todos os que acreditam em Deus e mesmo para os descrentes. Duvidamos até se não haverá naquela história pequenos pontos que foram sendo acrescentados por aqueles que a contaram. Mas nada disso interessa. Provar se é ou não verdade, perder tempo a encontrar vestígios que comprovem a realidade e veracidade dessa história, não é o importante. Importa sim aprendermos e retirarmos alguma coisa da forma como alguém aproveitou a vida e a gastou não consigo mas com e para os outros.

Este Verão aprendi uma dessas histórias. Aprendi um história que fez História. O Santo que conheci chama-se S.Francisco Xavier. Este ano celebram-se 500 anos passados desde a data do seu nascimento. S. Francisco fascinou-me. Era um jovem espanhol rico que residia num castelo em Xavier. Era inteligente, astuto, bonito, ambicioso, um óptimo atleta e com jeito para as miúdas. Quando chegou a altura, foi estudar para Paris na Universidade de Sorbonne. Levava a típica vida de estudante... divertia-se com os amigos, bebia uns copos, praticava desporto, namoriscava, estudava. Partilhava o quarto com um amigo de longa data - Pedro Fabro. Certo dia, passa a partilhá-lo também com um estranho homem chamado Inácio, que se vestia de forma andrajosa, parecia bem mais velho do que realmente era, ... e era um grandessíssimo beato. Estava sempre a falar de Deus a Francisco e repetia-lhe vezes sem fim a frase : "De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se depois vier a perder a sua alma". A principio, esta frase não era para Francisco mais do que sinónimo de gastar latim mas começou a ganhar sentido quando os dois começaram a conversar. Através de Inácio, Francisco conheceu Deus, conheceu o essencial, conheceu o caminho que devia percorrer, caminho este que não passava nem pela carreira de Mestre de Artes, nem pela glória de ser um grande atleta, nem pela vaidade de ser bonito mas por se agarrar ao essencial e esquecer o "mundo inteiro", esquecer aquilo que dantes o decorava mas não o enchia. Passava por se juntar a mais uns amigos que partilhavam o mesmo projecto de vida e com eles formar a Companhia de Jesus, seguindo o Seu exemplo. Assim surgiram os primeiros jesuítas. Francisco acabou por aceitar a missão proposta pelo Papa, partindo para a Índia em evangelização. E assim passou o resto da sua vida. Em lugares desconhecidos, com culturas e pessoas de diferentes hábitos e tradições, tocando onde quer que fosse com a palavra de Deus. Dizia, numa das suas cartas, que por vezes, de tanto baptizar lhe doíam os braços ao ponto de nem os conseguir levantar. Ao peito, trazia escrito num papel o nome dos Companheiros e consigo viajava sempre a cruz oferecida por Inácio, diante a qual muitos se converteram. Acabou por levar Deus até ao Japão, onde percebeu que para conseguir cumprir a sua missão teria de ir até à China. Foi precisamente às portas desse império, deitado numa esteira na areia de uma ilha a poucos quilómetros do solo chinês, esperando pelo barqueiro que tardava a vir, amparado num seu amigo e agarrando a cruz de Inácio, que S. Francisco Xavier morreu de exaustão.

Foi com esta sua história que S. Francisco que fascinou.

O resto fica para outro post que este já está grande demais =).