Há já muito tempo que quero pôr aqui esta pequena história. Primeiro, porque sempre que a leio acabo a rir e rir é bom e faz bem aos músculos da cara. Depois, porque me lembro sempre da minha co-bloguista Leonor, cuja relação com as ervilhas (sim, é isso mesmo: ervilhas!) é muito semelhante à descrita no conto. Além disso, ando sem inspiração (para lhe chamar uma coisa poética) para escrever o que quer que seja. Portanto, três boas razões para a pôr aqui. Faz parte de uma antologia organizada pelo escritor norte-americano Paul Auster que se chama Pensei que o meu pai era Deus. O escritor fez um programa de rádio em que lia histórias escritas pelo americano comum, histórias pessoais de amor, de guerra, de desconhecidos, de situações insólitas. Daí nasceu o livro. E aqui fica Um prato de ervilhas. Espero que se divirtam tanto quanto eu!
Um prato de ervilhas
O meu avô morreu quando eu era pequeno e a minha avó começou a ficar connosco cerca de seis meses por ano. Os meus pais reservaram-lhe um quarto a que chamávamos “o quarto dos fundos” e que não era só dela, visto que o meu pai também o usava como escritório. Para onde quer que fosse, a minha avó transportava uma nuvem de uma poderosa fragrância. Era aquele tipo de perfume que pode ser comparado a uma bebida que, de tão alcoólica, nos deixa rapidamente inconscientes, ou a uma espingarda de dois canos capaz de matar um alce de uma vez só. A arma do crime era um pulverizador enorme e a minha avó usava-a de uma forma tão liberal quanto assídua. Quem entrasse no quarto dela arriscava-se a sufocar. Quando ia passar os outros seis meses do ano com a tia Lillian, a minha mãe e as minhas irmãs abriam de par em par todas as janelas, retiravam a roupa da cama e punham os cortinados e os tapetes a apanhar ar. Depois, passavam vários dias a lavar e a arejar tudo, num frenético combate para erradicar o penetrante odor.
Assim era a minha avó na época em que se deu o ignominioso caso das ervilhas.
A coisa passou-se no Biltomore Hotel, o qual, para a minha cabecinha de oito anos, era sem dúvida o mais chique dos locais para se comer fora em toda a cidade de Providence. A minha avó, a minha mãe e eu fomos almoçar ao Biltmore Hotel depois de uma manhã a fazer compras. Todo inchado, pedi um bife Salisbury, sabendo muito bem que, sob esse nome pomposo, se escondia um hambúrguer bem à maneira com montes de molho. Porém, quando me trouxeram o bife Salisbury, verifiquei, não sem surpresa, que vinha acompanhado de uma bandeja de ervilhas.
Eu não gosto de ervilhas. Não gostava de ervilhas quando tinha oito anos. Sempre odiei ervilhas. O facto de alguém comer ervilhas por sua livre e espontânea vontade é, para mim, um mistério verdadeiramente insondável. Eu não comia ervilhas em casa. Não comia ervilhas no restaurante. E é claro que não ia comê-las no Biltmore Hotel.
“Come as ervilhas”, disse a minha avó.
“Mãe”, disse a minha mãe com a sua voz de aviso. “Ele não gosta de ervilhas. Deixe-o em paz”.
A minha avó não respondeu, mas havia um brilho nos seus olhos e um arrepanho no seu queixo e boca que indicavam, de uma forma muito clara, que ela não permitiria que a contrariassem. Inclinou-se para mim, olhou-me bem nos olhos e proferiu a fatídicas palavras que numa questão de segundos, mudaram por completo a minha vida:
“Pago-te cinco dólares se comeres as ervilhas”.
Eu não fazia a menor ideia da triste sina que, nesse momento, avançava na minha direcção como uma daquelas esferas gigantescas usadas na demolição de edifícios. A única coisa que eu sabia era que cinco dólares era uma soma colossal, quase inimaginável, e que, por muito horríveis que as ervilhas pudessem ser, bastar-me-ia comer aquela pequena bandeja para ficar com os cinco dólares. E foi assim que, com grande esforço, comecei a engolir as nojentas bolinhas.
A minha mãe estava lívida. Quanto à minha avó, exibia aquele ar glorioso de quem acaba de jogar um trunfo invencível. “Eu posso fazer o que muito bem entender, Ellen, e não és tu que me vais impedir”. A minha mãe lançou-lhe um olhar assassino. Depois a ferocidade do seu olhar fixou-se em mim. No que toca a olhares assassinos, não há ninguém que bata a minha mãe. Se houvesse uma prova de olhares assassinos nas Olimpíadas, não tenho a menor dúvida de que ela ganharia a medalha de ouro.
Eu, obviamente, continuava a enfiar ervilhas pela garganta abaixo. Os olhares assassinos estavam a deixar-me nervoso e, de cada vez que engolia uma ervilha, só me apetecia vomitar, mas a mágica imagem dos cinco dólares flutuava diante dos meus olhos e, por muito enjoado que estivesse, a verdade é que a bandeja lá acabou por ficar vazia. Com algum aparato, a minha avó tirou a nota de cinco dólares e deu-ma. A minha mãe manteve-se calada, mas os seus olhos continuavam a fuzilar. E o episódio chegou ao fim. Ou pelo menos era o que eu pensava.
A minha avó foi para casa da tia Lillian umas semanas depois. Nessa noite, ao jantar, a minha mãe serviu duas das coisas de que eu mais gostava e continuo a gostar: rolo de carne e puré de batata. Mas o rolo e o puré não vinham sozinhos: tinham a companhia de uma grande e fumegante tigela de ervilhas. Ofereceu-me algumas ervilhas e eu, nos derradeiros momentos da minha inocência infantil, recusei. A minha mãe fixou-me com um olhar cortante enquanto punha um monte enorme de ervilhas no meu prato. E foi então que, pela primeira vez, ouvi as palavras que haviam de perseguir-me durante anos.
“Comeste-as por dinheiro”, disse ela, “Também podes comê-las por amor.”
Oh desespero! Oh devastação! Só agora – demasiado tarde! – me apercebia de que, involuntariamente, condenara a minha pobre pessoa a um inferno de que não havia escapatória possível.
“Comeste-as por dinheiro. Também podes comê-las por amor.”
Haveria alguma coisa que eu pudesse contrapor a isto? Não, não havia nada. Se comi as ervilhas? Oh, pois claro que comi! Comi-as nesse dia e em todos os dias em que a minha mãe as serviu. Os cinco dólares gastei-os num instante. A minha avó faleceu passados alguns ano. Mas o legado das ervilhas sobreviveu-lhe – sobrevive ainda hoje. Sempre que me serve ervilhas e vê um esgar de enjoo, por muito leve que seja, na minha cara (porque a verdade é que continuo a odiar as horrorosas bolinhas verdes), a minha mãe repete, pela enésima vez, as temíveis palavras:
“Comeste-as por dinheiro. Também podes comê-las por amor.”
Rick Beyer
1 comentário:
Abaixo as "bolinhas nojentas"! Ervilhas não!! Só de pensar nisso... BRLÂH! A má notícia é que a minha mãe e a minha consciência também me obrigam a comê-las mas NÃO ME PAGAM 5$!! "oh desespero!Oh devastação!"
=) beijos! GMDTI!
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