Tonta de sono e a maldizer os atrasos recorrentes dos autocarros entre dentes – mas com aquela bonomia portuguesa de quem gosta de refilar por tudo e por nada, aquela ligeireza de quem conta antecipadamente com a imprevisibilidade das coisas e se deixa encantar pela falta de controlo que tem sobre quase todas elas – lá subi eu para o autocarro. Ia um pouco atrasado, como sempre, mas chegava à justa, sobretudo se o condutor se pensasse piloto de rally e esticasse um pouco a máquina a subir os Combatentes. Chegar a horas eu chegava, pior era o sono, o cansaço… Nem que tivesse de tomar cinco cafés de enfiada, não, aquilo eu não perdia nem por nada.
Religiosamente, como quem cumpre um ritual sagrado pela última vez, lá fui para a sala três, a sala do canto naquele claustro histórico, a sala com o nome de um qualquer ilustre jurista, de que não me lembro ou não sei ou desconheço, porque para mim, ali, naquele momento, ilustre havia só um e eu estava a vê-lo cruzar a ombreira da porta.
Não há como esquecer aqueles olhos pequeninos, que nos olham por detrás dos óculos de massa, aquele sorriso que nos conduziu pelos meandros do Direito Penal, pelos risos do humor e pelo fascínio de quem ama o que faz e é dotado de uma invejável lucidez sobre o mundo, sobre a vida, sobre o Homem. Costa Andrade é um homem apaixonado. Talvez por isso as suas aulas tenham sido sempre tão apaixonantes.
Desta vez, a sala não estava cheia. Mas os fiéis mais convertidos lá estavam. A ouvir o agradecimento dele, a beber a humildade dele, a ouvi-lo dizer que tinha pena de não poder ter tido uma relação mais pessoal com os seus alunos, connosco, mas que nós ainda éramos muitos e que para além das aulas ele tinha imenso trabalho, mas que tinha gostado imenso do curso deste ano e que desejava profundamente que todos nós passássemos logo à primeira – claro, acrescentou no seu toque de humor, que mais não fosse pela razão prática de assim só ter de fazer um exame! E nós rimos com ele, partilhando daquela sensação incrível que é a reciprocidade.
Eu confesso que estava estupidamente emocionada. E daí, estávamos todos. Quando ele nos desejou boa sorte para a vida, um rugir de palmas caiu sobre a sala, quarenta almas ficaram de pé, como no fim de uma excelente peça de teatro, em homenagem espontânea ao mestre. E ele, que não gosta nada destas coisas, fazia gestos com a mão para nós pararmos, no meio de sorrisos. Ele, como eu, tem alergia a formalismos atávicos, parolos, e coisas dessas é o que mais abunda naquela faculdade, onde se aplaude de pé por tudo e por nada, sobretudo quando não há nada a aplaudir. Muitos professores ali inchariam em vénias perante tal demonstração, ainda que ela fosse meramente formal. Costa Andrade ficou visivelmente emocionado, tão emocionado que ficou sem saber bem como reagir. Chamando a assistente para ao pé de si, estendendo o aplauso para ela, disse muito simplesmente quando parámos: “ Para a próxima aula não vos digo nada!”.
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