A Cabra dá doze badaladas. Deixo para trás a Porta Férrea e corro um pouco, não vá quebrar-se a tradição e começar-se à hora. Subo as escadinhas, aceno à Sala dos Capelos à minha direita e prossigo. A ombreira da porta lateral acolhe-me, aceno então ao azulejo da raposa que só pontapeei uma vez e ouço um ilustre professor informar a um transeunte bem vestido “É no auditório!” Dobro a esquina do pequeno hall, e vejo logo ali o espectáculo: um rol de gente engravatada conversa em amena espera. Sossego vendo o mundo rodar nos eixos: a tradição ainda é o que era.
O claustro transpira personalidades ilustres e eu, que não sou ilustre nem nada que se pareça, sinto uma onda de entusiasmo percorrer-me o corpo. Afinal não sou indiferente ao charme do poder, do reconhecimento público de alguma coisa que seja, nem que seja apenas, como em certos casos muito raros hoje em dia, a beleza estonteante e a absoluta falta de talento. Aqui, não é o caso. Aqui há talento, aqui há poder, aqui há troca de favores.
Reconheço caras sisudas, caras sorridentes, outras não reconheço. O cortejo, grave, desce alegremente as escadas, em marcha lenta, lenta, lenta. Temos um auditório enorme e fantástico, modernaço e sóbrio, com uma fabulosa entrada do tamanho de um postigo.
Sinto no ar a excitação dos outros, o burburinho das conversas dos outros. Há também sotaques de além-mar, que prova bem o nível de reconhecimento que atingiu o homenageado, Jorge Figueiredo Dias, e a importância deste acontecimento que é a sua última lição.
Ouvir falar este nome sonante do Direito Penal deve ser uma coisa fascinante. Deve ser, porque eu nunca ouvi.
Figueiredo Dias fez setenta anos e a lei mandou-o jubilar-se (até o imagino a saltar em cima da cama, com leis avulsas nas mãos, como rebuçados, a rejubilar de contentamento pela jubilação). Ora manda a tradição, nesta ala geriátrica da Universidade de Coimbra, que o professor jubilado, por professa ignorância, não dê a sua última aula. Sim, é isso mesmo. Esta senhora manda que a última lição do professor jubilado não seja dada pelo próprio, o mestre, mas pelo seu discípulo mais velho. Manuel Costa Andrade, no caso concreto. A cereja é a justificação: por motivos de “humildade científica” e “noção de continuidade”.
Ó magnífica tradição, ó deusa imperativa a quem todos rezamos e devemos devoção! Corta-nos a raiz do pensamento, estupidifica-nos com a tua sabedoria, abrasa-nos, esmaga-nos, traga-nos com a tua imensidão!
Ao jubilado não é permitido sequer comparecer à sua própria homenagem. Esta espécie de funeral antecipado é como que um prolongamento da ideia distorcida de humildade que vigora neste país. Humildade, no léxico de Portugal, significa não se congratular pela ambição que se teve de ir mais longe, num país que nivela por baixo e esmaga com o jugo da tradição. “Não te gabarás!” “Não ficarás feliz pelas tuas próprias conquistas!” Significa embaraço perante o elogio, daí a necessidade de apenas o fazer indirectamente, perante outros que não o elogiado. O falso elogio tornou-se tão banal que o verdadeiro elogio, aquele que vem de dentro, da admiração sincera, não encontra quase lugar. Porque o verdadeiro elogio deixa um rasto de vulnerabilidade na sua passagem, ao implicar a humildade genuína que não se ensina neste país.
A cerimónia em si foi bonita. Encenações destas é o que de melhor se faz em Portugal. Falou-se bem a linguagem social, aplaudiu-se de pé o discurso de Costa Andrade e a partir das 13h já ninguém ouvia nada se não o estômago.
Acredito que haja vozes dissonantes, mas mesmo essas são engolidas pela força inelutável de alguma tradição. Costa Andrade fez um grande discurso, transbordante de uma sabedoria e cultura que não é para qualquer um. Foi é engolido pelo formalismo da tradição e pelo nervoso da responsabilidade. De qualquer modo, a ocasião não era para ele mas sim para o homenageado, e tudo em Costa Andrade foi de uma profunda humildade sincera.
À saída mesmo, a correr para apanhar o autocarro, ouvi um belo comentário de um assistente que me dá aulas práticas: “Fogo, o gajo… tu viste o discurso do gajo? Eu não conseguia... nem conheço metade dos nomes que ele citou!” Alguém lhe respondeu: “Oh, eu conseguia, ia aos livros arranjar umas citações…” “Oh, pois mas mesmo assim…”
O resto já não ouvi. Mas talvez vá aos livros buscar umas citações.
Sem comentários:
Enviar um comentário