Há exactamente dois anos e onze dias. Doze dias. Treze dias. Vão passando os dias e a carta espera porque nunca chegará ao seu destino. Há exactamente essa eternidade precisa, deixaste. Desististe. Catorze dias. Quinze dias. Vão passando os dias e foi hoje exactamente há dois anos e quinze dias. A pergunta ficou suspensa nos nossos lábios vivos. Eternidades passam e a tua memória perdura, porque tu existes precisamente à flor da nossa memória. És Abril. Abril em mim, Abril em nós.
Não quero glorificar a tua morte. Não há nada de glorioso no suicídio e a glória póstuma de gente invisível em vida é a maior arrogância da gente visível que sobrevive. Arrogância e culpa. A tua infelicidade foi um crime punido com a indiferença mas somos nós os criminosos que a lei não pune. Só a consciência.
Uma vontade, uma corda, uma fuga: a cobardia e a coragem ficam ao critério de quem te quer julgar como bom ou mau, nesse maniqueísmo terrível da moral rasa de papel. Eu não sei, há um pouco de tudo ou talvez nem seja nada disso. Quem sabe? Os teus lábios já não respondem. Há exactamente dois anos e quinze dias.
Tudo isto é demasiado impressionante para as palavras. Porque não foi só o impacto da tua morte o impressionante – o impressionante foi o vazio. Num momento existias e no momento seguinte não passavas de uma memória. Voluntariamente. Conscientemente. Puff.
Se eu soubesse exprimir tudo o que perdeste nesta eternidade reduzida de dois anos e quinze dias… mas como expressar a beleza de viver por inteiro? Como expressar a maravilha que é viver uma paleta completa de tonalidades cromáticas? Como fazer-te ouvir o sublime das escalas todas, dos tons, dos acordes, dos ritmos, ruídos, silêncios e como fazer-te sentir a textura das palavras vivas? Como mostrar-te que o belo, o dolorosamente belo, de estar vivo é experimentar os matizes todos dos sentires e sentidos, os cambiantes dos sabores das lágrimas e dos risos e a mais insuportável banalidade dos dias reais? Como explicar-te que não há magnitude nenhuma, não há realeza, não há tronos, não há coroas – só cadeiras de verga onde sentamos o corpo cansado de mais um dia brutal, onde bebemos o licor da esperança dos dias que ainda hão-de vir e recuperamos energias perdidas com preocupações vãs? Como revelar-te que não há indignidade nenhuma no sofrimento e que a alegria não é uma planície? Como explicar-te que a felicidade é uma substância química pouco palpável cujo néctar só bebemos em certos momentos pequenos e a doseados tragos? Como transmitir-te a calma divina da paz de espírito e da tranquilidade, quando os assombros e os fantasmas abandonam a nossa cabeceira da vida e nos deixam relaxar por inteiro? Como extasiar-te com a euforia da descoberta, de nós, do outro, de nós com o outro?... Como falar-te do Amor? E como, como, desenhar-te os contornos indefinidos desta coisa vaga e imprecisa que é Viver?
Se eu soubesse mostrar-te tudo isto, se tu tivesses sabido tudo isto… Porque no fim só paira uma pergunta nas nossas línguas sobreviventes: para quê, T.?
Para quê?