Olho-me ao espelho como uma desconhecida e vejo a evidência que tanto me irrita: a palidez da minha pele não liga com a minha carapinha. Está escrito na minha imagem que sou o fruto de um atentado às convenções, filha de dois mundos diferentes. Sou feita de duas raças e a arbitrariedade com que a natureza as juntou em mim é dolorosamente cruel. Do meu pai de ébano herdei a cabeleira rebelde, indomável e insubmissa, da minha mãe a pele láctea e olhos cor do mar. Faço parte daquele terreno pantanoso que não é uma coisa nem outra, e eu não sou branca, nem preta, nem mulata. Cometi o pecado de nascer diferente e a diferença é, para o Homem, um pecado sem perdão.
O espelho olha-me do outro lado e eu vejo-me desconhecida. O espelho olha-me como um desconhecido com a força do preconceito. Sinto nele os sorrisos de piedade, os olhares de espanto e sinto-me como uma besta no circo, estou num palco e vejo os rostos surpreendidos por entre as barras de ferro. Apetece-me gritar, partir o espelho, quebrar o espelho do mundo. Apetece-me odiar as pessoas que me olham com os olhos no umbigo e não vêem nada – nem mesmo elas próprias.
Eu cometi o erro de ser uma contingência estranha da natureza. Cometi o erro maior, o que encosta o Homem à parede e lhe põe o rabo entre as pernas e as orelhas baixas e a miar e a gemer e morrer de medo. Eu cometi o erro de não ser classificável.
Eu sou branca, tenho os olhos azuis e o cabelo muito preto, muito enrolado na cabeça. As minhas raízes estão espalhadas por duas culturas, duas formas de vida tão opostas quanto ricas em beleza. Amo as minhas duas culturas e as minhas origens dispersas, amo-as e não sou nem só uma nem só outra. Eu tenho o privilégio pesado de ser duas e não ser nenhuma e, embora eu ame os dois mundos que me deram vida, eles não me amam a mim porque só amam a pureza. As duas matilhas olham-me como a um cão rafeiro, brandindo aos quatro ventos a qualidade da sua raça pura.
Não sou rotulável. Eu sou a prova viva da imprevisibilidade do Universo e sou suficientemente arrogante para afirmar que personifico a confusão, a dúvida, o medo. As pessoas olham para mim e não compreendem a Natureza, eu grito-lhes a estranha contingência da vida aos ouvidos tapados e abro-lhes os olhos cegos para a coisa mais assustadoramente bela da existência: a imprevisibilidade. Mas as pessoas precisam de clareza, de certeza, de segurança. Eu também. E olho para o espelho e vejo tudo isto e sei que vou ser sempre inadaptada. Porque eu sou o oposto da clareza, da certeza, da segurança. Eu sou uma brincadeira cósmica à escala humana. E por isso, sou olhada com desconfiança, até por mim própria. O preconceito dos outros é o mesmo que o meu e não é por isso que deixa de me irritar menos. A incoerência da minha pele e da minha cabeleira dói-me como as minhas contradições, porque sei que, se fosse de uma só raça e olhasse alguém que não é uma coisa nem outra, o meu olhar seria de preconceituosa indiferença, talvez até de desdém, e a consciência disto é extremamente dolorosa. É tão fácil julgar os outros com os olhos cegos postos no nosso próprio umbigo, tão fácil usar os nossos padrões, a nossa bitola liliputiana, a nossa curta perspectiva para tecer juízos de valor sobre os outros… e esta é a minha vergonha, o meu arrependimento – sou inadaptadamente preconceituosa por despeito.
1 comentário:
Este é um texto, no mínimo, diferente (como a rapariga). Não deixei de sentir uma estranheza ao lê-lo, muito pela estranheza da própria situação. A ideia vai-se desenvolvendo com consistência, racionalidade, coerência. E a linguagem está de acordo com ela: sóbria, directa, sem arrependimentos.
Há algumas frases que se me cravaram mesmo, por exemplo, "Cometi o pecado de nascer diferente e a diferença é, para o Homem, um pecado sem perdão". Mas, para mim, a pérola verdadeira ainda é: "Eu sou uma brincadeira cósmica à escala humana." Não seremos todos?
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