quinta-feira, março 01, 2007

Reverentíssimo professor

Ele entrou solene na sala e com ele entrou o silêncio. Sem olhar sequer para os míseros subordinados sentados nas primeiras filas, dirigiu-se majestosamente ao quadro, sobrolho franzido e lábios apertados, numa expressão terrivelmente assustadora. Foi com assombro que o vi pegar num pedaço de giz e, em gestos tremidos e vagarosos, começar a escrever umas linhas numeradas. Quase me vieram as lágrimas aos olhos ao lembrar-me dos stores do ensino básico a escrever o sumário! Oh, saudade!
Pousou o giz e dirigiu-se à secretária de mogno (ou de outra madeira qualquer, mas gosto desta palavra: mogno) onde estavam já comodamente instalados um copo e uma garrafa de água do Luso. Ainda de pé, sempre com a expressão medonha na cara, com as sobrancelhas unidas por uma ruga tremenda e os lábios apertados contra o nariz, onde lhe caem perfeitamente os óculos míopes, ele esfrega com a mão esquerda os dedos da mão direita, embranquecidos pelo pó do giz. E continua o gesto obsessivo até que se senta, pesado, na cadeira reverencial de catedrático. Que excelente dinossauro!
Abre então a boca, descontraindo por momentos os lábios carnudos e avermelhados, e deixa ver uns dentes muito brancos, muito direitos. As suas sapientíssimas palavras atropelam-se umas às outras num magnífico jorro de conhecimentos que, se lhes fizéssemos fast forward, seriam de facto interessantes. Mas não. O único ponto de interesse é quando ele se lembra de dar um ar da sua graça e, esquecendo por momentos o modo solenidade, se ri de uma qualquer coisa que disse, voltando a mostrar o sorriso Pepsodent e alisando a ruga gigante que lhe contorce toda a expressão. Convém só dizer que o seu riso é apenas isto: alisar a ruga entre os olhos e mostrar os dentes brancos. Não há cá sons, nem paragem para os ecos do riso, nada disso! O direito é um assunto muito sério.
Chega o final da prelecção (aula é demasiado banal para o reverentíssimo professor) e ninguém se mexe. Espantada, pergunto ao amigo sentado ao meu lado num tom quase inaudível: “Ninguém sai antes de ele se levantar?” Ele abana a cabeça. Para um lado e para o outro. Meu Deus!

5 comentários:

António Pedro disse...

Engraçado ler o teu texto e ver a cena toda. Como se fosse um filme. Esqueceste-te apenas da parte em que a funcionária se encosta na ombreira da porta a tremelicar, enquanto aguarda pacientemente que ele (Ele) acabe de escrever o sumário no quadro, momento esse em que deposita a folha em cima da mesa e ele assina. Um silêncio tão intenso que se ouve a caneta a riscar o papel.

rita disse...

Pois é, esqueci-me dessa parte! Não gostava nada de estar no lugar da senhora.

Isto é ridículo. Revoltante. Não percebo como é possível não ser possível fazer alguma coisa contra este tipo de ensino (e chamar-lhe ensino é favor).
Ele ficou preso no século passado e ninguém o tira de lá. A prova disso são os, sei lá, quinze? alunos que vão às aulas deles num universo de, quê, seiscentos? que têm a cadeira por fazer (claro que a maior parte não vai a nenhuma aula, mas a esta muito menos). E a cereja em cima do bolo são as 8 positivas em 170 frequências. É RIDÍCULO!!!
Era bom que ele descesse à terra e percebesse que isto não é sinónimo de exigência da parte dele: é pura estupidez (e talvez uma grande dose de sadismo).

Anónimo disse...

Esta era a ponte que faltava para o outro lado?! O lado da repetição dos exames nacionais?!:-)
Adoro ler o teu diário académico. As histórias do meu diário académico também não são muito boas. Deve ser da proximidade dos edifícios! Mas as tuas são, sinceramente, um bocadinho piores.

Olga

rita disse...

:) quem sabe?

Por estranho que pareça, começo a passar é para o outro lado da barricada... esta coisa do direito é mais ou menos como a Coca-cola: "Primeiro estranha-se, depois entranha-se!"

(Claro que senhores como este são outra história... e é por histórias como esta que a faculdade de direito tem a fama que tem)

Príncipe Myshkin disse...

Isto podia ser um conto de terror. Se o Poe tivesse andado na FDUC, que obras estranhas a sua pena não teria conhecido!
É verdadeiramente inadmissível o que se passa convosco. Estou este semestre a ter a experiência mais parecida com a vossa a Introdução aos Estudos Linguísticos. Agora passo a explicar o que significa "mais parecido": o professor vai-se reformar este semestre, só permite avaliação final, faz aulas essencialmente de exposição. Porém, as diferenças são enormes: está continuamente a dar exemplos de tal fomra que todos o percebem, a matéria é até aceitavelmente interessante, vai-nos perguntando se temos dúvidas e responde às perguntas que colocamos, e, na última aula, imagine-se!, fez um desvio do tema da aula que, a bem dizer, ocupou metade da aula, em conversa simpática com os alunos. Isto não é mais do que um fantasma do teu "dinossauro".
Tenho, sinceramente, muita pena de vocês: vão ser todos canonizados.