Embrulhei o meu coração em papel celofane para o proteger de toda e qualquer forma de dor. Um dia, quando tentei tirar o papel, ele estava demasiado agarrado à carne e foi impossível descolá-lo. Arranquei pedaços do papel à força e foi assim que fiquei com o coração desfeito. Foi nessa altura que percebi que seria melhor ter um tijolo a bater no peito em vez desse relógio de corda. Mas isso não seria nada prático, porque estaríamos constantemente com um enorme peso no peito.
Mais tarde, o tecido do coração foi crescendo e recuperando consistência. Creio que os restinhos de papel foram absorvidos pelo corpo e o coração cresceu desmesuradamente, sem a obstrução do papel. Tive medo de ter um coração desprotegido, em jeito de flor abandonada ao vento norte. Pensei em pô-lo numa redoma de vidro, impecavelmente higiénica e transparente. Mas eu não queria ser uma flor rabugenta e cheia de espinhos. Não encontrei uma solução e deixei, a medo, o coração ao natural.
Um dia o meu coração encontrou outro coração e brincou com ele. Riram os dois feitos loucos e bateram descompassadamente. Reparei depois que o tecido fino que envolvia o meu coração estava mais forte e que, quanto mais ria e aparvalhava com outros corações, mais esse tecido se entrelaçava em si e nos outros.
Às vezes rasgavam-se os tecidos e isso fazia o coração ficar outra vez pequenino. Queria cobrir-se de celofane, confessava. Mas eu dava-lhe dois pares de estalos e dizia-lhe que não, que não o queria enterrado na mortalha transparente. Ele não percebia, mas eu sim.
Embrulhei o meu coração em amor para que ele batesse descompassadamente ao saber a vida, ao sabor da vida, ao longo de uma longa e desejada vida.
E nunca mais comprei papel celofane.
4 comentários:
Que bela metáfora...
Tenho de deixar os livros de informática para recomeçar a ler, para ver se não fico muito mais burro... :/
Obrigada. :)
Mas olha que para pareceres burro não podes usar palavras como "metáfora"!
Já agora, o que é isso? ;)
Este é daqueles textos que nos arrancam um sorriso bem do fundo do coração, pelo menos, aos corações não-tijolos, aos corações libertos de celofane. Verdadeiramente adorável, na sua simplicidade, num estilo que começo a perceber ser teu. Há brincadeiras magníficas no texto, subtis, não se impondo, mas que o coloram. Eu já comentei como gosto mesmo do blogue de vocês as duas?
:) sim, mas comentários desse são sempre bem-vindos! (esses e quaisquer que venham!)
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