É só um pedaço de tecnologia. São só uns quantos números. São só palavras trocadas tantas vezes. É só um telemóvel.
Eu não ligo muito ao telemóvel. No início, irritava-me aquele objecto estranho e nunca sabia onde o pôr. Mas, à medida que me ia habituando ao objecto estranho, ia-me afeiçoando a ele.
Há uns meses, quando ele tentou fazer um mortal à porta de minha casa (depois de imensas tentativas das quais não saiu ileso, ficando com vincados arranhões naquela carinha tola), ficou surdo e mudo. Foi para arranjar e recuperou o pio e o ouvido atento. Senti a falta dele durante um mês, apesar de ter tido um rasco substituto verde-ranho, que me incomodava profundamente na sua forma, lentidão e pouco fôlego para aguentar os dias. Para durar o mesmo que o outro (o meu), tinha de o carregar umas três vezes. Nunca confiei nele.
Estranhei as teclas e as cores do meu regressado telemóvel quando finalmente voltou para mim. Ah, bons tempos em que ele voltou a ouvir como dantes e a falar ainda melhor!
Só que o seu destino estava talvez traçado desde o início. A verdade é que nunca mais fez mortais e nunca me ameaçou fugir. Mas ontem... deixou-se seduzir por uma mão malvada que se meteu com a minha carteira na confusão carnavalesca. Ou então caiu, enquanto eu fugia da chuva, com um rabo com o triplo do tamanho do meu, umas calças brancas às pintas azuis e o resto da vestimenta igualmente parola e improvisada de velhos figurinos do Teuc. Mas só se a chuva me abriu a carteira.
Nunca gostei muito do Carnaval. Gostava quando era pequena, o fascínio de mascarar, pintar a cara, fascínio de todas as crianças. Mas há uns tempos que me irrita o Carnaval e a folia estúpida de gente tristonha e monótona que só se liberta vestida de mulher, de vampiro, de zorro ou de fada. E nem nos valem os cortejos, importados directamente do Brasil, cheios de um samba que não vale nada porque, por ser importado, lhe falta aquilo que mais lhe faz falta: a garra. Mas dancemos, dancemos e cantemos vestidos de gente que não somos até a festa acabar e o país voltar ao fado e às tricanas. Ao menos bebemos umas cervejas.
Não gosto muito do Carnaval. Há quem goste, e muito, e há muitas maneiras de viver o Carnaval. Como em tudo. Eu não gosto. Gosto, talvez, do fascínio (de criança?) de vestir a pele de outras pessoas, andar outros andares, falar outros falares, sentir outros sentires. Mas isto não é Carnaval, é teatro. Gosto do pouco de teatro que há no Carnaval.
Não gosto do Carnaval. E finalmente, em 2007, com a morte do meu telemóvel, percebo porquê: os foliões que são ladrões não deixam de ser ladrões só por serem foliões. E se a ocasião faz o ladrão, esta foi uma ocasião em que alguém se fez ladrão. Não há máscaras que mudem isso. Não há disfarces que mudem nada.
O que vale é que, no fundo, é só um pedaço de tecnologia. O resto – tudo o resto – não se rouba assim tão facilmente. Os números só têm valor porque são pontes para as pessoas. E essas sabem onde me encontrar. E eu a elas: há sempre outras pontes.
3 comentários:
Eu também não gosto do Carnaval. E lembro-me de há uns anos ir para o mar com um Nokia esquecido no bolso dos calções. Quando saí da água obviamente que esse já não estava comigo.
Tu és assaltada por foliões...
Eu por sereias xD
Pelo menos ser assaltado por sereias é mais original. :)
Mas 'pera lá, eu também posso ter sido assaltada por qualquer coisa original! Se calhar foi pelo Homem Invisível: eu nem reparei! :)
Talvez por de tão perto conviver com o Carnaval, também eu não gosto dele: passa-me, muito sinceramente, ao lado. Quanto ao pedaço de tecnologia, só vale pelo que tinha lá dentro e não se deixava roubar. Agora que tens novo telemóvel, ensina-o a não se deixar seduzir!: não se fala com estranhos.
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