quinta-feira, novembro 23, 2006

Tapete voador

O autocarro ia cheio e ele ficou colado ao vidro da frente. Lá fora chuviscava um fim-de-tarde de Inverno com cheiro a castanhas. Cá dentro cheirava a cansaço de fim de dia, uma espécie de suor abafado de rotina cumprida, e não se ouvia absolutamente nada. Agarrado à barra das senhas, juntinho ao vidro, olhava de frente a estrada que se abria para ele. E então abstraiu-se de tudo: do autocarro, das pessoas, do tempo, da cidade e do caminho que tão bem conhecia. Só existia ele e, um pouco mais difuso, o condutor do autocarro, que o observava pelo canto do olho numa sintonia cúmplice de quem já fez algo parecido. Ou pelo menos assim imaginava ele, sentindo nessa cumplicidade um estímulo para não quebrar a saborosa viagem. Colado ao vidro da frente e olhando de frente a estrada, ele flutuava num tapete mágico, deixando-se balançar gostosamente ao ritmo desse voo…
O seu sorriso desvaneceu-se apenas quando percebeu que o autocarro estava então quase vazio e já não era preciso ir colado à janela, esmagado entre anónimas formigas ansiosas por regressar ao formigueiro. Sem vergonha e com prazer, flutuou até um dos lugares livres e ficou lá a olhar a janela. Talvez tenham pensado que se sentou mais uma formiga cansada. Ele, porém, ainda estava lá à frente, e a voar olhando o mundo nos olhos, livre, inteiro, dançando sempre ao doce balançar desse tapete mágico…

3 comentários:

Mónica (em Campanhã) disse...

Rita: vim cá ter pela mão da Sofia Martinho e fico feliz por finalmente conhecer a animadora favorita do meu filhote (pinóquio este ano pela primeira vez, Filipe do Porto, no canto superior direito das tuas fotos).

apesar de dizeres que mal te lembras do Hélder, afinal lembras-te do essencial: do riso dele, da criança que nele habitava e que sonhou este sonho improvável que é o mocamfe (este sonho que lhe sobrevive e que me alicerça, como a ti e a uma imensa minoria de pessoas).

obrigado Rita, pela tua carta. sabes, o velhote, como lhe chamávamos, foi visto em Stª Apolónia no dia em que os pinóquios partiram para o campo. como um amigo dos campos escreveu quando ele partiu: "ele está no meio de nós".

rita disse...

Sou viajante assídua da linha do norte e admiradora desses três amigos que a estruturam. E é com um sorriso tímido e envergonhado que agradeço o comentário da mãe de um pinóquio lindo que faz agora parte "deste sonho improvável": obrigada. :)

São estações como Coimbra, Campanhã e Stª Apolónia que me fazem acreditar que o Mocamfe nos fica no sangue e que os campos nos ficam gravados em recortes na memória, por mais viagens que façamos, por mais apeadeiros em que descansemos.

Obrigada.

[um grande beijinho para o Filipe - e que ele se perca nesse "país de cristal" onde também eu já me perdi! :)]

Mónica (em Campanhã) disse...

então até sempre! o Filipe tb manda um beijinho grande