Acordei hoje cedo, tensa, irritada, sem vontade nenhuma de ir às aulas. Invejei gulosamente todos aqueles que estão de bem com a consciência quando esquecem que estudam nos interstícios das frequências e desejei, como tantas vezes, não ter esta minha aguda consciência de tudo. Quis ficar a dormir, na verdade dormitei mais uma hora, mas lá decidi deixar o quentinho e enfrentar a chuva. Tudo pela minha consciência.
Cheguei à faculdade, caderninho de caloira na mão, preparada para entrar na História do Direito Português. Mas mal saio do autocarro, encontro duas amigas irritadíssimas porque os frustrados do segundo ano lá estavam, arrogantemente trajadinhos à espera de ver chegar os caloirinhos para despejar neles as suas frustrações indevidas.
Parei e fiquei com elas. Vamos? Aceitamos o risco de sermos mobilizadas, tentamos mostrar que queremos mesmo ir às aulas, ou damos meia volta com o rabo entre as pernas e deixamos passar? A Cabra apontava já para as 10h28m, implacavelmente. Não sei. Não me apetece encostar o corpo à parede e gritar “sou um pega-monstros!” nem cantar músicas brejeiras de mais para as 10h30m da manhã, que entretanto a Cabra já anunciara com a sua badalada animal.
Para meu desespero, demos meia volta e fomos desperdiçar tempo com um café da manhã mal amanhado. Não é só de quatro que há humilhação – a impotência psicológica é bem mais funda do que a subordinação física. E faltar às aulas por medo é uma terrível forma de humilhação.
Vim o caminho todo a pensar nas ironias da vida e nas tensões em latência que cada um guarda em si. Secretamente, desejei ter escolhido ir às aulas, desejei ter sido suficientemente segura de mim para escolher o meu caminho sem interferência de um bando de putos que, com mais um ano, tem todas as minhas cadeiras. Se quero faltar às aulas quero ser eu a escolher faltar às aulas. Mas não. E faltei na mesma.
Não resisti a ir ler umas coisinhas sobre a praxe e não pude deixar de rir com tanta ignorância. A começar pelo lema “Dura praxis sed praxis”. Como pôde uma palavra tão bonita como “praxis”, a prática, a acção do homem, tornar-se numa coisa tão rasteirinha como um conjunto de tradições que cumpre transmitir a todo o custo? Como se pôde adoptar como lema uma adaptação do tão desajustado mote “dura lex sed lex”, típico do positivismo legalista que não faz absolutamente nenhum sentido? Tal como o direito não se reduz à lei, também a vida universitária não se reduz à praxe.
Acredito que a praxe faz sentido nas primeiras semanas de vida universitária, como forma ritualizada de iniciar uma nova etapa, como choque inicial de uma nova fase da vida que é, independentemente das condições de cada um, mudança. E passa por aceitar a diversidade e enormidade de um mundo que sabemos não conhecer e perante o qual somos em muitas situações inúteis e impotentes. E a praxe mostra isso. Mas vida universitária é sobretudo um processo de crescimento, que passa por aceitar o papel interventivo da nossa pessoa, que lentamente vai deixando a impotência de lado e abre-se a novas formas de intervenção e de vivências. E é a partir desta consciencialização que a praxe como joguinhos de poder deixa de ter sentido.
“Ao contrario do que se possa pensar a praxe não é para fazer mal ao caloiro ou gozar com ele, mas sim a praxe serve para ajudar o caloiro ou recém-chegado a Universidade a integrar-se no ambiente universitário, a criar amizades e a desenvolver laços de sólida camaradagem. É através da Praxe que o estudante desenvolve um profundo amor e orgulho pela instituição que frequenta, a sua segunda casa. […] A Praxe revestiu-se historicamente de diversas formas, sofreu inúmeras transformações e chegou mesmo a estar proibida e suspensa. Após o 25 de Abril de 1974 a Universidade deixou se ver vista como um lugar sagrado, destinado a muito poucos, e assim com a democratização da Universidade, voltasse a implantar a grande tradição da Praxe Académica.” Não consigo deixar de traçar um esgar irónico ao ler isto que alguém escreveu numa página da net sobre a praxe, alguém que é membro da COPA da Universidade Lusófona. O texto vem com a seguinte observação: OBS: Este texto foi-nos gentilmente enviado por e-mail para publicação pela Ass. Escadote Cultural [escadote_cultural@hotmail.com]. Embora não seja especificamente sobre a Universidade de Coimbra, achamos deveras de interesse. Acho deveras interessante a qualidade de todo este português, desde o “voltasse a implantar” (tradução: volta-se a implantar) até ao encadeamento lógico de ideias. Mas ei, eu sou uma caloira recém-chegada, eu não sei nada! E preciso que me embebedem e que me obriguem a dançar o cabaré e a dizer que sou a Rita, a puta que mais grita aqui no cabaré, e preciso que me obriguem a pôr de quatro no chão para quem passa por trás ver os nosso rabinhos de caloirinhos ingénuos e preciso que venham os repórteres e nos filmem a fazer estas lindas figuras e preciso que os “doutores” me tratem por você e por caloira e que me berrem e que me perguntem quantos dentes tenho, se sou virgem, de que estrebaria sou… e a vontade que eu tenho é mandá-los todos a um certo sítio, a eles mais aos seus laços de camaradagem e sólidas amizades hierarquizadas. Filhos da puta. Filhos da puta não, que não há puta que os parisse. Apetece é citar Fernando Pessoa no seu mais rude tom, mostrar-lhes a minha erudição de rua, enquanto eles me obrigam a cantar a francesa aos transeuntes que me olham com nojo.
Exagero, talvez, mas fico revoltada com situações como esta. E fico revoltada quando os professores dizem que no segundo semestre quase não têm alunos. Por que será?
Não consigo compreender esta mediocridade arrasante que inunda este nosso país, as nossas instituições, os nossos cidadãos. Não consigo compreender esta contínua tensão entre a lei do mínimo esforço e a dura realidade de que nada se consegue sem esforço e sem trabalho. Não consigo desenredar-me desta teia em que já caí de cultivar uma imagem aparentemente despreocupada e de espírito desocupado de estudo, uma imagem de uma certa suplesse, de um à vontade desenrascado de todos, de todos nós.
O que mais assusta é que esta situação não se passa só na faculdade de direito, significando isto que o futuro de Portugal é um futuro de juristas medíocres, entalados na “dura lex” que não ousam sequer questionar, um futuro de maus advogados, de maus juízes, de maus notários, de uma cambada de gente ineficiente, ignorante e cega. E também de maus médicos, professores, físicos, historiadores, matemáticos, políticos, engenheiros, etc, que se auto intitulam “Doutores”. É o país que temos e o bom ensino que ele tem!
5 comentários:
Li e fiquei triste... triste p/ter q admitir q tens mta razão!!!Infelizmente...a praxe já ñ é o q era!!! Deixava só 1desafio(pq ñ 1provocação???)...pq ñ fazermos diferente?!(Qd a nossa hora chegar!)Pq ñ... trajar a rigor e c/o respeito q o traje e tds aqueles q já o vestiram nos merecem?! Pq ñ praxar pa criar laços em espírito de camaradagem...de ACADEMIA?! Pq ñ praxar na hora certa, no dia certo?! É o q vou fazer...procuro companhia!!!!!!!
Stéphanie
Tens razão, eric (já agora, quem és tu?), a frustração era grande e, agora que falas nisso, reparo no paradoxo que é eu chamar frustrados aos pobres coitados do segundo ano quando eu também sou (todos somos) uma grande frustrada da vida... enfim, são momentos de tensão criativa! :) repara, se eu não tivesse sentido toda aquela frustração naquele dia, não teria escrito este texto (mesmo sendo um texto duro, reconheço-o)e teria perdido uma oportunidade de reflectir sobre todas estas coisas. Apesar disto, acho que exagerei um bocadinho no tom com que escrevi, aproximando-me quase de um discurso anti-praxe. Quase. Mas não sou anti nada, porque ser anti qualquer coisa é ser pró qualquer outra coisa, o que é uma grande contradição. (E eu detesto filiações em ideas pré-concebidas.)
Obrigada pelo teu comentário! (Podias era assinar com o teu nome... assim sou obrigada a chamar-te eric_draven...)
Quando os meninos de 2ª ano decidiam praxar... onde estava eu... em casa... só ia para a faculdade à hora do almoço quando tudo já estava sanado... porque simplesmente háum tipo do 2ª ano que éde uma cidade rival à minha e para descarregar as suas frustrações de ser inferior num jogo de esconder os sapatos por baixo das capas mandou um pontapé bem assente nas mãos por ter tocado num sapato duma mulher que me tinham atirado...
A partir dai sempre que me mobilizavam dizia para eles terem juizinho, ou simplesmente deixava-me estar por casa, porque ai sabia que ninguém me iria lá buscar...
E para o ano, o meu caloiro, em vez de ser praxado, vai ter um tratamento melhor... vou com ele no primeiro dia apanhar uma bebedeira do caraças pó Couraça e depois vamos curtir a noite pa Via Latina...
Peço desculpa por ir desenterrar um "post" antigo, porém, não pude deixar de reparar neste texto... E concordo em absoluto com ele... O que é a praxe? Algo para integrar a nova comunidade de estudantil no meio académico? Tudo feito a pensar no bem estar dos caloiros? Não, é apenas uma desculpa para os megalomanos dos doutores (não vi qual era a data do post... Mas concerteza já deves ser Semi-Puto) andarem a denegrir e flagelar os coitados dos caloiros. Eu posso-me orgulhar de nunca ter praxado um caloiro e de nunca ter sido submetido a praxes com cariz maléfico ou flagelante na altura em que eu também fui caloiro. Prefiro apenas conviver com os recém-chegados, leva-los a ver Coimbra, a sua noite e a sua magia. Penso que é muito mais belo, profundo e é de uma camaradagem imensa. Gostava que todos os caloiros tivessem a tua linha de pensamento, pois assim... Teriamos cada vez mais doutores integros e dignos de prestar praxes dignificantes e realmente integrantes.
Sem mais,
João
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