sábado, janeiro 19, 2008

Os processos da vida

Eu não sou psicóloga. Sou, ou parte de mim é, aprendiz de jurista, que é como quem diz estudante de direito. A palavra processo está, por isso, para mim, irremediavelmente contaminada pelo universo jurídico. Em processo leio, automaticamente, processo civil, processo penal, administrativo, acção judicial, sequência de actos e diligências referentes à composição judicial de um litígio ou conflito de interesses… e outros palavrões que tais.

Cheguei já a um estado que se pode considerar grave: penso nas palavras processos da vida e tenho logo a imagem nítida de uma gigante biblioteca com estantes a abarrotar de processos arquivados, processos chorudos onde estão guardados todos os pormenores da vida de cada pessoa. Seria engraçado poder chegar a uma biblioteca assim, dirigirmo-nos sem vergonha ao bibliotecário e pedir, sem mais, para consultar o processo das nossas vidas e, quem sabe, das vidas dos outros. Seria sem dúvida engraçado, mas também perigoso, e traria novos sentidos ao tão falado segredo de justiça…

Mas não é de justiça que se fala quando se fala em processos da vida (a vida é tudo menos justa). A palavra processo, mais do que a palavra vida, é arrogantemente polissémica e por isso a minha mente de jurista foi estudá-la ao dicionário. Saí, obviamente, derrotada: a minha ignorância é tal que nem se lembrou do significado primeiro, mais óbvio e escancarado da palavra. Processo é, antes de mais, o modo pelo qual uma coisa é feita. E logo a seguir, a forma pela qual alguma coisa tem um determinado percurso, tem um certo seguimento.

Como a minha imaginação é pródiga, em todos os sentidos, imaginou logo um curso de água, correndo liquidamente ao longo do seu caminho. E pensou também que, no limite, tudo é processo, até o rio, que corre interminavelmente pelos tempos. Razão tinha então o filósofo quando dizia, para espanto de todos, que nunca se toma banho duas vezes no mesmo rio, seja porque as águas são já outras, seja porque o banhista não é já o mesmo. Tudo o que é orgânico é processo, matéria em decomposição, ainda que seja viva. Até os calções de banho do tal banhista, matéria morta, não são os mesmos ao segundo banho no rio: estarão mais gastos, mais ruços, mais perto, enfim, do destino que os aguarda, com um sorriso irónico nos lábios, e que é a sua morte. Ou a reciclagem, que é mais politicamente correcto.

Processo é, portanto, nesta acepção, uma coisa em devir (ora cá está a minha perspectiva filosófico-jurídica a meter-se onde não é chamada), é evolução, transformação, mudança, passagem.

Claro que uma perspectiva assim, embora realista, é assustadora. Saber que os calções de banho, bikinis e afins, aqueles de que tanto gostávamos e que usaríamos até ao fim dos tempos, envelhecem e se estragam e deixam de cobrir com pudor os segredos e os locais que no fundo são iguais em todos nós é algo verdadeiramente doloroso. É uma perda irremediável e da qual saímos sempre outros, mais cépticos, mais amargos, mais desiludidos com o processo da vida. Mas no limite, tudo é processo, e processo é, na sua essência, digo eu e não o dicionário, dinâmica, dialéctica, movimento e às vezes estagnação. Processo é, e assim diz o dicionário, uma sucessão de etapas e de estados.

Mas processo é apenas uma parte do problema. A outra parte, bem mais complexa, é em si só um mundo irresistível: a vida.

E aqui é que as coisas se tornam verdadeiramente difíceis. O dicionário contém definições, não respostas. O dicionário explicita as acepções da palavra, mas todos os significados são poucos para a vida. De tão especial, quase se pode apelidar de palavra mãe, a palavra de onde brotam todas as outras. Mas o que é a vida, afinal? O que é a vida?

Sim, numa perspectiva muito científica e pragmática, a vida são processos. Nascemos e morremos – entre esses dois momentos, tudo em nós é um conjunto infindável de processos, processos incríveis, milagrosos, misteriosos, processos que nos levam a dizer, se no fim ainda formos capazes, que vivemos, que fomos vivos, que passámos por este mundo e experimentámos esse fenómeno inefável que é viver. Processos atrás de processos, descobertas, aprendizagens, mudanças, transformações, experiências… o léxico é variado, mas tudo se resume a uma palavra: processo. O próprio nascimento é um processo complexo. Doloroso, num irónico piscar de olho a quem nasce, como quem diz que a vida, ela própria, não é fácil e é, muitas vezes, dolorosa.

Eu não conheço, em qualquer grau que ultrapasse o senso comum, os fenómenos reais que são esses processos todos, quer a nível cerebral, hormonal, anatómico, celular, genético ou qualquer outro que fazem parte da experiência de se ser pessoa. Não sei que nome lhes dar, não sei identificá-los. Não sei apontá-los num mapa, não sei procurá-los no dicionário. Mas sei senti-los.

Sei reconhecê-los em mim e, por analogia (sempre o jurídico, estou perdida…), nos outros. Por mais diferenças de fundo que haja – e há-as, sem dúvida – somos todos humanos e a experiência de se ser humano é uma experiência universal. Os processos são em tudo semelhantes em todos nós, humanos, nós que evoluímos dos macacos (dizem), que evoluímos da própria evolução do mundo, em si mesma um processo repleto de processos – como as matrioshkas russas, grávidas de si próprias em miniatura – e chegámos aqui, hoje, ao Homem global, ao Homem “evoluído”, ao Homem cada vez mais parecido consigo próprio.

O Homem que, embora individual, preso no seu corpo, no seu ser, nos seus processos interiores, se transcende e alcança o outro, ama, age e influencia a pequena parcela do mundo onde vive, se deixa transformar, se deixa amar, se deixa evoluir. E no fundo, tudo isto são processos.

Sim, a vida é um conjunto intrincadamente complexo de processos, a vida, essa linha descontínua entre o nascer e o morrer. A vida, essa poesia breve, essa brisa que nos faz estremecer num orgasmo silencioso ao percebermos quão breve e finita ela é… esse cheiro a maresia, essa cor, essa alegria, esse vibrar esfusiante de energia! Essa dor, eterna, esse respirar como se fosse a última golfada de ar, esse leve desespero, essa lamentação de saber a condição com que nascemos… E no fim, poder dizer ainda: “eu vivi, eu vivi plenamente sabendo que iria morrer, eu vivi sabendo que me foi dada a magia de passar por um número incontornável de processos a que tive constantemente de me readaptar, reajustar, numa flexibilidade aprendida à custa de muitas lágrimas e de muitos risos”. Poder dizer: “eu vivi e dei vida, eu vivi e amei e fui amado e, embora morra agora, não morri. E de alguma maneira permaneci na memória de quem me sobreviveu”.

Sim, a vida é uma sucessão de processos. Processos com ou sem sentidos, consentidos ou não, que a vida não pede autorização para acontecer. A vida, a vida, a vida… Haja só esta ou haja outra, a vida é rica. A vida é, não pode deixar de ser, processos. Mas…

E a Vida, o que é?

1 comentário:

Anónimo disse...

Olá,
O Direito processual Declaratório (e o Executivo), em Coimbra é uma cadeira desvirtuada. É uma cadeira que é tratada como acessória ao direito material. De facto, o processo é adjectivo, instrumental, mas não acessório. Leia-se um manual de Abrantes Geraldes, e compare-se com o Remédio Marques, ou mesmo com o de Antunes Varela (co-autoria com Bezerra e Nora), e vê-se bem a forma como tratam o processo, talvez por não ter as teorias objectivistas, subjectivistas, e as nossas maravilhosas e preferidas teorias ecléticas! Castro Mendes diz-nos que o fim do processo não é, apenas, a tutela do direito material mas também a justa composição de um litigio, logo, o processo civil não serve só o processo, como, sobretudo, o completa, juntos obtendo aquela composição.
O processo é um trilho, onde se caminha, passo a passo, numa sequência lógica (ás vezes não) e previsível, até ao ponto final.

Post Scriptum: Abomino Processo (e processos) e sequências lógicas, mas reconheço que são essenciais, tanto para a almejada justa composição, como para o equilíbrio da nossa vida.

Cumprimentos