A minha avó sempre teve gatos. Era eu pequenina e pegava num fio e fazia trinta por uma linha com os gatinhos, que apesar de tudo entravam com paciência nas minhas brincadeiras felinas. A minha avó sempre disse que não queria mais gatos porque vestia um luto comprido sempre que um deles morria. E eu na altura não percebia, porque os gatos eram lindos e fofinhos e divertidos, e eu nunca estava lá a ver o corpo inerte deles quando eram atropelados ou quando adormeciam de velhice.
Eu tenho um hamster. Uma hamster, na verdade, tenho que dizê-lo: o meu único hamster antes desta viveu a vida toda com problemas de autodeterminação sexual, porque nós teimávamos em chamá-lo Algodão, mas a sua anatomia e comportamento ditavam precisamente o contrário. Talvez por isso, ou não, o Algodão tinha tendências suicidas e encontrávamo-lo muitas vezes a cirandar pelo chão da casa. Nunca descobrimos como conseguiu ele (ou ela, na verdade) abrir a tampa da gaiola e saltar o metro e meio de bancada que a erguia do chão sem sofrer graves hemorragias internas. As patitas deviam ser mais fortes do que pareciam ou então a barriga rasa não chegava a tocar o chão. Não sei. Acho que agora também já não interessa.
A verdade é que tenho uma hamster há pouco mais de dois anos. Como os hamsters vivem em média três, a pobre da Chica (sim, é um nome estúpido e a explicação ainda é mais estúpida, por isso mais vale nem contar) está no período a que se chama velhice. Mais, está a entrar naquilo a que se chama senilidade.
A Chica, quando era nova e irreverente, tinha o hábito irritante de, assim que eu punha areia nova e comida e a casa dela mais parecia um hotel de cinco estrelas, virar imediatamente tudo do avesso, derramar a água, virar o prato da comida e depois encher as bochechas até não conseguir atravessar a janela da casa, por onde entra sempre, e ter de entrar pela porta (ela nunca foi convencional). Era uma espécie de rotina, o pobre do bicho não descansava enquanto não punha a casa lá como ela queria. Tudo bem, aprendi a ver esse ritual e, a certa altura, deixei de ligar.
Era movida pelo instinto. O instinto fazia-a ir directamente para o prato da comida, encher as bolsas de sementes e levá-las para o ninho, onde estavam seguros, longe de possíveis predadores, onde teria mantimentos para sobreviver se tivesse de se refugiar. Basicamente, cumpria os desígnios da natureza, ainda que mantida em cativeiro pelos humanos. Por mim.
E assim passou a sua juventude.
Foi então que começou o estranho hábito de andar do lado de fora da roda, contra a grade. Irreverente? Talvez, no início. Mas é muito ténue a linha entre a irreverência e a loucura. Mais tarde, começou a andar pendurada de cabeça para baixo nas grades de cima da gaiola. Eu não fiquei nem um bocadinho surpreendida, pensei que tivesse chegado ao cúmulo da irreverência.
Só recentemente reparei nos terríveis efeitos da senilidade nos animais. É que andar ao contrário na roda, andar pendurada de cabeça para baixo, é compreensível se pensarmos no tédio que era a juventude dela. Mas agora…
Agora eu mudo a casa à Chica e o hotel de cinco estrelas fica intocável. O pobre do bicho bebe um bocadinho de água, não toca na comida e anda de um lado para o outro a cheirar os cantos. Pega numa semente e faz maratonas de uma ponta da gaiola à outra. Bate com a cabeça na roda e fica sem saber onde pôr a bola de sementes que tem na boca. Pousa-a no chão e vai em direcção a casa. Sem comida, sem as bochechas a abarrotar. Entra. Pela porta.
A minha avó sempre disse que não queria mais gatos. E eu não percebia porque não sabia nada da morte. Mas a vida dos hamsters é bem diferente. Uma gaiola é bem diferente. E agora sou eu que digo que não quero mais hamsters! Muito menos gaiolas.
2 comentários:
Olha que seja qual for a fase da vida da chica amorica, um hábito mantém-se fiel: ela rói sempre as grades, aliás, qualquer dia não há gaiola! eu mantenho a minha teoria, ela vive extremamente infeliz, miseravelmente prisioneira, e está há anos a planear uma fuga, precisamente a tentar destruir as grades que a prendem! enfim...eu digo que ela vai ser muito mais feliz quando morrer, é assim mesmo, pelo menos não vai andar pela gaiola o dia inteiro a ir contra os poucos objectos que lá estão dentro! teve uma existência um bocado triste, temos de admitir... Não sei se sei alguma coisa da morte, mas a verdade é que concordo contigo...e soltei várias espécies de gargalhadas em algumas partes deste teu texto (apesar de agora o sorriso estar a ficar uma bocado amarelo)...os animais domésticos dão muito que pensar...
isto não teve muita lógica, eu sei... :P
Esta velhice da chica anda a deixar.me pouco sossegada. já nao me lembrava da ultima vez que tive animais, e eram hamsters... nao vinham pedir pela comida com um miarzinho, nem pediam colo, festas, nem dormiam aos pes da minha cama ... acho que as vezes penso que as gatas vão ser eternas (talvez como o patocas).
É triste, porque elas nem entendem quando mio para elas (sempre me convenci que o patocas me ouvia) ... na verdade nem sequer eu entendo o que lhes estou a dizer (ou miar)! isto dos animais dá mesmo muito que pensar...
enfim... tambem concordo contigo, tendo observado (embora mais longe) o percurso da chica nestes 2 anos, apesar de maior parte das vezes ter so um vislumbre do focinho enterrado em algodao e comida a espreitar da janelinha. ahahahah [a chica é a maior e tenho dito!]
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