sábado, setembro 01, 2007

Regresso

Será urgente regressar? Regressar, simplesmente, assim de repente como nasceu uma criança. Regressar, sem pressas, às avessas, com a mochila cheia a abarrotar de gentes, com os dentes tortos de bater com a boca no chão das quedas que se (não) deu, com as costas cheias de dores e os pulmões colados à garganta (como se isso fosse anatomicamente possível). Será preciso regressar?

Para regressar é preciso ter partido. Mochila às costas, roupa no pêlo, guitarra na mão (ou não), bilhete de ida e volta, fazer-se ao caminho. Quem foi que disse ao viajante que não há caminho? “Viajante, não há caminho, faz-se o caminho ao andar.” E se não se andar? Ficar parado é triste.

Talvez haja regressos metafóricos. Ou porque o viajante nunca chegou a partir ou porque não se atreveu a regressar. O que interessa é quem regressa, não o regresso em si. Como voltou? Vem mais cheio, mais inteiro? Mais gordinho? Que aconteceu no caminho?

Sim, que aconteceu? Só tem sentido assim, o regresso. Espalhar a roupa da mochila na cama e com ela os pedacinhos dos outros que vieram por engano no meio dos trapos. Sentir a sujidade das roupas e lembrar os segredos que ela guarda. O que aconteceu? Espalhar depois os pedacinhos que não vieram porque não deixámos e os que perdemos e ficaram a pairar na ponte invisível entre mim e o outro – a ponte dos afectos, instável, com vigas de madeira a baloiçar de um lado ao outro. Indizível para quem não sente, desmorona-se com facilidade e com esse desmoronar ficamos sós. Nós e a nossa roupa suja na mochila. Mas há sempre o espanto que nos leva a escavar mais fundo, a querer descobrir mais, uma pequena certeza de um pedacinho de alguém, nem que seja roubado, e a encontrá-lo ao pé de um par de meias mal cheirosas onde guardámos o nosso lado errado. Pena que tenha ficado tanta coisa esquecida na nossa própria mochila… algum viajante ficou mais pobre porque nós só lhe mostramos a roupa de cerimónia e não lhe demos uns trapos que guardamos junto ao coração…

O que é o regresso afinal? Há um regresso ou o regresso é o de quem regressa? É o mesmo que chegar? É o inverso de partir? Para que regressamos?

Regressar é voltar ao lençol do quotidiano e vê-lo com olhos extraordinários. Sim, é preciso regressar. Chegar, enquanto descoberta, não basta. É preciso voltar a chegar. Regressar tendo partido, regressar outro, mas o mesmo (ou qualquer coisa de intermédio). Regressar, sempre, como se viajássemos continuamente e repetidamente regressássemos de viagens infinitas. Regressar, ponto final. Quem não regressa é a mera promessa de partir. E a promessa, embora fina, é como quem desafina porque nem chegou a cantar. E ainda assim, não basta o regresso em si. O regresso como um fim é a ilusão da viagem. Não conheço nenhum viajante a quem baste o regresso. Isso são os turistas, cheios de souvenirs e lembrancinhas que não lembram a ninguém, as fotografias e o postal da catedral que se viu pela lente da máquina descartável. Não, não basta o regresso e os seus troféus. É preciso ter visto com olhos de ver, ter olhado outros céus, outros seres e no fim vir ainda insatisfeito. Com o aperto no estômago de não ter bastado, de não ter sido, de não ter dado mais do que o bastante.

Para que serve este regresso? Para que serve a barriga de insatisfação, de tristeza a roçar a melancolia, de pesar? É o embalo, a raiva, a seiva da certeza de voltar. Re-partir e regressar.

5 comentários:

Príncipe Myshkin disse...

Alegra-me este anúncio e saber que, doravante, vou de novo encontrar aqui os vossos textos, mistura de pensamentos e sentimentos.
Este "Regresso", logo a abrir, está suavemente belo, um deslizar de imagens e reflexões articuladas não com a lógica matemática e racional de uma filosofia, mas pela associação livre e, todavia, coerente do coração. É um texto riquíssimo, abordando tantas coisas, que sinto dificuldade de o comentar. Uma ideia, porém, parece-me resumir tudo: a importância das pessoas, dos contactos humanos. Como achei engraçada aquela descrição dos turistas! Quase resolvi adoptar aquela como a explicação oficial para, de uma maneira geral, ser, quando vou em viagem, bastante apático a comprar souvenirs ou tirar fotos, preferindo guardar as recordações dentro de mim e partilhá-las depois com os outros apenas pela força das palavras. Ao mesmo tempo, a verdade é que sinto sempre uma certa insatisfação, como descreves, como se quisesse ter conhecido melhor todos aqueles estrangeiros que via nas ruas: já concluí há muito que, para mim, em qualquer visita turística, teria de viver durante no mínimo um mês numa cidade, para lhe sentir o pulso e o sangue.
Com isto tudo, desviei-me do texto. Já não no âmbito das ideias, mas das imagens, duas em particular tocaram-me. É deliciosa aquela ideia dos trapos e pedacinhos de pessoas escondidos na mochila! Mas o que me arrebatou mesmo foi aquele passo: "ficaram a pairar na ponte invisível entre mim e o outro – a ponte dos afectos, instável, com vigas de madeira a baloiçar de um lado ao outro". Este cenário, que para mim parece tirado do Indiana Jones, só mesmo tu te lembrarias de o aplicar com tanta verdade à amizade, às relações!
O vosso regresso está, vejo, sob bons auspícios...!

Ricardo disse...

Parabéns à dona leonor!! :D

Nem li o texto, prometo que o faço quando estiver mais desperto :)

**

Anónimo disse...

Obrigada Ricardo!
beijinhos! :)

Anónimo disse...

Um texto cheio de sentidos
"É preciso ter visto com olhos de ver...e no fim vir ainda insatisfeito."
Foi assim mesmo que senti quando regressava da minha missão quase impossível ao Talasnal, no dia em que começava o campo de trabalho e uma semana antes do churrasco a que sabia não poder comparecer.
Abraço

Anónimo disse...

Querida amiga, sou insatisfeita. Sempre. Mesmo quando o dia feito foi feliz. A insatisfação faz-nos caminhar e continuar a crescer. Como passar dos dias as coisas não fazem mais sentido agora? Um abraço apertado, sofiazul