sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Agrafador de sapatos

Ó agrafador de sapatos,
Agrafa, agrafa toda a tua vida
E não te queixes da tua sorte!

(Ah, pudesse eu agrafar sapatos toda a minha vida
Sem que a minha consciência reprimisse a minha sensibilidade!)

Estou cansada pelo cansaço que antecipo
E aqui mortifico todo o desejo de sucesso.
Eu não quero estudar, eu não quero saber!
É este o meu custo de oportunidade?
(Ah, que até já transbordo economia política
por todos os meus poros ainda sãos!)

Que me interessa se é este o custo social da minha especialização?
Que me interessa se agora vivo à custa da sociedade
para mais tarde ser uma trabalhadora especializada
e com maior capacidade produtiva?
Ah, que se lixem Marx e Smith e Ricardo e os fisiocratas
E todos esses parvalhões que teorizaram infinitamente!
Que se queimem todos os papéis e livros e ferramentas
De que se usaram para ficar para a posteridade!
Que eu não quero saber o que explica a passagem do feudalismo para o
[capitalismo!
Que eu não quero saber o que pensavam os mercantilistas e todos os
[istas que por aqui passaram,
Que eu não quero saber quem tem razão!
Que eu não quero aturar ensinos tendenciosos
Nem pensamentos falaciosos
Nem mentes bloqueadas pelas suas próprias crenças!
E viva a liberdade de consciência
E viva a liberdade religiosa
E viva a liberdade de imprensa
De pensamento e de todas as coisas!
Viva a liberdade, viva!
(Ai que me lembro já da liberdade de propriedade,
E do conceito incompleto dos fisiocratas
Que pensaram conseguir explicar tudo
Pela divina fertilidade da terra -
E absolutizaram a propriedade privada
E declararam o homem livre para possuir a terra fértil
Mas esqueceram a liberdade verdadeira do homem
Essa liberdade filosófica
Essa grandeza do Homem
Que é ter consciência da sua liberdade
E estar para sempre condenado
A essa sua condição livre,
E esse gigantesco peso,
A essa enorme responsabilidade!)

Enfim, resigno-me a pagar o preço
Desta minha formação
E decido embarcar no esforço doloroso e difícil…

E secretamente, desejo regressar ao passado,
Desejo vestir-me de peles de animais,
Aquecer as minhas mãos frias no calor de uma fogueira tosca
Tremer de frio à noite e enroscar-me regaladamente no meu parceiro.
Recear os ursos e os veados e os animais grandes e fortes e ferozes,
Mas de resto não ter de estudar nem de intelectualizar
E passar o dia a recolher bagas sumarentas
E a tratar dos afazeres das casas frágeis
E viver numa comunidade matriarcal onde seria venerada por todos…

(Ah, a romantização que a distância do tempo permite…
Ah, felicidade que só se sente com a possibilidade e evasão pelo pensamento…
Eu quero ser um esquilo e saltar de árvore em árvore e recolher bolotas 
[e ser feliz todo o Inverno com a minha provisão de sementes.)

1 comentário:

rita disse...

Só agora percebo como estava desesperada quando escrevi esta... coisa... :)