Encontrei uma velhinha de 92 anos que me perguntou que autocarro eu esperava. “O vinte e quatro”, disse eu, ligeiramente irritada pelos vinte minutos que já tinham passado sem que o autocarro viesse. “Também eu!” Não consegui deixar de simpatizar com este entusiasmo quase infantil. “É estudante?” “Sou”, respondi com um sorriso de orelha a orelha que nasceu nem sei bem por que motivo. “Boa sorte para os estudos”, retribuindo o sorriso espontâneo. “Obrigada”. Não podia ser mais apropriado, agora que estamos a um mês das amigas frequências. “É de cá de Coimbra?” “Sim” “Eu sou de Trás-os-Montes. Conhece?”. A voz soltou-se-me da alma sem eu perceber como, abrindo-se em mim imagens fortíssimas de paisagens transmontanas, muito verdes, muitas cabras, e velhinhas de preto agarradas aos teares, sorrindo e arreganhando sabiamente os quatro dentes das bocas vividas. “Conheço sim. Gosto muito de Trás-os-Montes, é uma região lindíssima.” Um sorriso indescritível iluminou o rosto da senhora. “E há quanto tempo está aqui em Coimbra?”
“Há trinta e três anos… ….há trinta e três anos. Sou viúva. … … Vim de Angola. “ Não consigo explicar o efeito que estas palavras tiveram em mim, nem a sucessão desordenada de imagens que passou pela minha cabeça à velocidade da luz. Soldados, muitos, e cravos nos canos das espingardas e fumo e tiros e lágrimas sofridas em silêncio pelos véus negros que ficaram para cá do Império e sorrisos salgados dos véus brancos que deixaram a África sua em navios de fumo negro, com etiquetas garrafais tatuadas na alma fria: Retornado.
Novos olhos encaram a velhinha que tanto me ensina. O sorriso abandonou os seus lábios, mas não a voz jovial que me pergunta com vigor se sei que idade tem ela. Nem me dá tempo para responder: noventa e dois! E com que orgulho! Eu sorrio e digo com sinceridade que nunca lhos daria.
Chega o vinte e quatro, já sem tensões absurdas. Quando me levanto cruzo de frente o olhar com a minha amiga que me diz espantada “Ah, só agora reparo como é bonita!” E eu enrubesço e agradeço e olho-a para lá das rugas e do cabelinho branco e imagino em retrato antigo esta mulher na flor da idade, esbelta, linda, fogosa, olhando complacentemente o fotógrafo que a imortalizou no meu retrato imaginário.
Adeus, amiga. Será que três palavras escrevem uma vida?
5 comentários:
Que texto Lindo! Sensível mas sem cair na lamechice. Fabuloso!
«coincidências significativas»
tornar-se consciente das coincidencias que actuam na nossa vida...
olhar para as nossas vidas e apercebermo-nos de que estão a acontecer mais coisas do que pensávamos. para além da nossa rotina e desafios quotidianos, podemos detectar a influência misteriosa do divino: «coincidências significativas», que parecem enviar-nos mensagens e conduzir-nos numa determinada direcção
cepticismo?!...reacção normal!
sensação de inquietaçao. sendo esta,insatisfação (mesmo depois de termos alcançado as metas), um vago desconforto ou a sensaçao de que nos falta alguma coisa. de vez em quando, um acontecimento fortuito surpreende-nos e intigra-nos. é como se nos estivesse a ser revelado um objectivo superior e, por um momento, nos sentissemos ligados a um mistério que, no entanto, se furta à nossa compreensão.
a combinação da procura interior («A vida tem de ser mais do que isto») com um empurrão cósmico ocasional («uau! que estranha coincidencia! pergunto a mim mesmo o que quereria dizer») é um processo eficaz. misteriosas e excitantes, as coincidências têm a intenção de nos fazer avançar no nosso destino. fazem-nos sentir mais vivos, como se estivéssemos perante um plano mais vasto.
há a necessidade de abrirmos as nossas mentes e os nossos corações ao desconhecido mágico, ao sonho cheio de significado, à pista inesperada que parece guiar-nos, sem esforço, para o tesouro ou a oportunidade que procuramos.
um grande abraço
Raquel
emocionaste-me :)
Olá!
Gostei muitp desde texto, acho que é um diamante! Ainda mais considerando que ambos os meu spais são retornados (de Mocambique). Gostaria, no entanto, de lembrar que as imagens que associas com as colónias são apenas um dos lados da moeda. No outro lado, também houvfe muita coisa boa com o intercâmbio cultural durante a aventura poortuguesa no ultramar.
:-)
Paulo.
Olá! Obrigada pelo teu comentário! :) É tão bom encontrar pessoas que gostam de algo que escrevemos!
E, claro, obrigada pela nota. Infelizmente, tendemos sempre a ver apenas um dos lados da moeda (ou ensinam-nos sempre a ver apenas um dos lados da moeda e é-nos difícil ver mais longe....). :) Obrigada!
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